terça-feira, 18 de setembro de 2018

Hades: Suicídio e silêncio

“Há momentos em que silenciar é mentir” - Miguel de Unamuno
Ao tratarmos de Hades nos encontros virtuais Mito e Mente sempre falamos da luz e da sombra dos aspectos relacionados à morte. É comum entre os junguianos a tendência de trabalhar o tema através da perspectiva da morte como transformação. Afinal, para Jung, o psicólogo que mais e melhor se debruçou sobre os mitos originários e modernos, todo o processo psíquico é exatamente isso, um processo! Ele tem um rumo, uma orientação “teleológica” - orientada para um fim, para uma finalidade ou meta - ou ao menos um “fluxo” - para os mais pragmáticos. Pois bem, a vida psíquica, como a vida orgânica está em fluxo, é profunda e constante transformação.
Represa Por esse viés das trocas energéticas efetuadas entre os diferentes complexos psíquicos ou sociais muitas vezes não percebemos que há, também, a possibilidade de interrupção desse fluxo, de escoamento final, de corte. Procuramos virar o rosto para a possibilidade fatal, para o acelerar fatal do processo a que todos tendemos. Faz parte da nossa reação de horror à sombra, ao pânico em lidar com aquilo que identificamos como incômodo, incerto, misterioso e hediondo.
Na Grécia Antiga evitava-se pronunciar o nome do deus Hades. Não era interessante invocar (do latim invocare “chamar para perto”) o deus do subterrâneo. Pois bem, estamos aqui para romper esse silêncio. Estamos aqui para viver em voz alta.
Sociologia do Suicídio
Émile Durkheim foi o primeiro sociólogo a estudar o suicídio como um “fato social”, como um fato relacionado diretamente a determinadas relações sociais, culturas e crenças sociais. Para ele os indivíduos eram integrados e regulados, em maior ou menor escala, através de “forças sociais” que poderiam ser estudadas e analisadas numericamente.
Da obra de Durkheim, O Suicídio (1897), temos a distinção entre três formas de suicídio: o suicídio anômico, o altruísta e o egoísta.
Suicídio Anômico: Em linhas gerais o primeiro, o suicídio anômico, trata do autoextermínio causado pela ausência de regras que mantenham a coesão e a coerência social (“anomia”, do grego ἀνομία - “ausência de regra”, “privação da lei”). É importante compreender que as regras sociais não cumprem apenas a função de nos limitar e tolher nossos desejos e impulsos, mas também de dotar de sentido, de direção e significado, as nossas ações dentro de uma determinada coletividade. Nesse sentido o caos gerado por grandes e aceleradas mudanças estruturais dentro de uma sociedade pode ampliar muito o número de fatalidades do tipo.
Suicídio Altruísta: Esse tipo de fatalidade ocorre pelo extremo oposto do suicídio anômico. Quando o excesso de regras impostas a uma coletividade se torna insuportável para uma pessoa ou para uma classe, esse tipo de suicídio tende a ocorrer mais. Temos aqui os causados em nome de uma “causa” maior, como da “liberdade” de um povo, uma etnia, e também os cometidos em defesa de um ideal seja ele civil ou religioso.
Aqui se encaixam também os suicídios de políticos japoneses indiciados por corrupção. O mecanismo social que responde por essas situações é a lógica grega do miasma - do grego míasma (“emanação”) - uma espécie de influência social nociva que passa, como que por convivência e contato, do sujeito criminoso para toda a sua família. Resta ao responsável eliminar a si mesmo para eliminar esse mal-estar corruptor do seio de sua família.
Suicídio Egoísta: Esse tipo ocorre quando o sujeito não se sente conectado de forma alguma à sociedade ou à realidade ao seu redor. Normalmente estamos integrados socialmente através dos papéis sociais que interpretamos em nossas vidas: mãe, professora, tio, primo, vizinho, síndico, médico, mecânico, enfim por laços de familiaridade, trabalho, comunidade e obrigações sociais. Quando esses laços são enfraquecidos pela perda de seus referenciais de apoio - perda de trabalho, cônjuge, familiares próximos, status social - o número de suicídios desse tipo aumenta.
Silêncio estatístico
Devemos lembrar sempre que as diferenças culturais entre os povos são fatores tão importantes quanto as culturas às quais esses povos são submetidos. Tendemos a pensar que o egoísmo, assim como o narcisismo, são consequências naturais e quase que inevitáveis da sociedade contemporâneas (pós-industrial). Isso não pode nos cegar para outras formas culturais de lidar com os mesmos problemas. Vejamos o caso do Japão contemporâneo.
No Japão, hoje em dia, a maior parte dos suicídios é causada pela vergonha em não se conseguir se “adaptar” ao ideal social, por fracassar em realizar os objetivos que o grupo impõe sobre seus membros.
A sociologia seguiu, após Durkheim, estudando as variações do suicídio e de suas motivações. Halbwacks (1933), Sainsbury (1955) e Cavari (1965) publicaram, sucessivamente, estudos relacionado o fenômeno social à urbanização e ao isolamento individual. Gibbs e Martin (1964) pensou a conexão entre suicídio e falta de integração de status, Henri e Short (1954) e Maris (1969) à falta de restrição externa e, mais recentemente, Phillips e Carstensen (1988) a efeitos sócio-psicológicos da mídia de massa. Como se vê, o tema é extenso. Mas os estudos sociológicos não ajudaram tanto a evitar os suicídios quanto ajudaram a tornar a sociologia famosa e respeitável no meio acadêmico.
...é imprescindível falarmos de Hades! A mão pesada do silêncio é cúmplice de tragédias futuras!
Problemas
Um dos maiores problemas em lidar com o suicídio é o silêncio. O silêncio que permeia todo o tema. Não podemos, por exemplo, considerar como muito acuradas as estatísticas sobre o suicídio. Da mesma forma como, em geral, temos grande dificuldade em falar com aqueles que ficam sobre aquele que se foi. Acontece que diferentes culturas determinam de forma diferente o que as autoridades entendem como suicídio. Muitos são considerados acidentes e tantos outros como assassinatos. Há um outro fato social a ser considerado aqui: se a autoridade encarregada de fazer o registro da ocorrência não encontrar uma motivação socialmente validada, ou tiver algum interesse - de qualquer ordem! - em acobertar o fato, ele não entrará para as estatísticas.
Por isso também é imprescindível falarmos de Hades! A mão pesada do silêncio é cúmplice de tragédias futuras!
Aspectos psicológicos
Wilhelm Steckel e Alfred Adler estudaram o suicídio como “agressão deslocada”, algo que Freud posteriormente, no seu estudo sobre o luto e a melancolia, definiu como a libido que, uma vez liberta do seu objeto de atenção, se desloca para o ego, criando uma identificação com o objeto de afeição perdido. Se o sujeito se identifica - se liga sua própria identidade, sua essência - a algo que já não mais existe, ele passa então a anular a si mesmo, a negar sua existência, ou ao menos o propósito dela. Em Para além do Princípio do Prazer Freud identifica o suicídio como uma vitória precoce do instinto de morte.
Muitos psicólogos cognitivos tem se embrenhado em pesquisas quantitativas ligadas ao suicídio. Seus estudos, principalmente por serem mais recentes, talvez tenham uma conexão mais forte com a nossa sociedade contemporânea. Uma de suas conclusões sobre o suicídio são: Suicidas em potencial são pessoas com processos de pensamento extremamente polarizados.
Como estudamos nos encontros Mito e Mente, todo pensamento flui entre extremos, entre ausência e presença, falta e excesso. Mas o que caracterizaria o pensamento com tendência suicida seria, justamente, o rompimento do “continuum” entre esses dois pólos, a dificuldade ou incapacidade de enxergar os “tons de cinza” entre o preto e o branco, por exemplo. Pessoas que tendem a enxergar o mundo de uma forma totalitária tenderiam mais ao extermínio de si mesmas.
A Grande Casa
Se pensarmos um pouco essa correlação é até bem simples. Imagine que você está construindo uma casa. Um dos significados do nome Hades é, justamente “a grande casa” ou “aquele que abriga a todos”. Pois bem, estamos construindo uma casa. Imagine que tenhamos três pilares sobre os quais ergueremos tubulação, paredes, vigas, fiação, teto etc. Imagine que um desses pilares, feito de madeira, foi infestado por cupins e cedeu. O que ocorreria com o resto da casa?
Pois bem. Agora imagine que a casa tivesse, como normalmente as casas têm, quatro pilares. Um cede. O estado geral da casa é melhor do que antes, certo? A questão é que em nossas mentes - ao contrário do que se vê no mundo físico e na construção civil - é possível criar estruturas imaginárias com apenas uma pilastra. E elas têm, estruturalmente, a mesma possibilidade de “dar errado” que casas reais construídas apenas com uma pilastra.
Rebaixamento do nível mental
Pessoas que estruturem suas dinâmicas psíquicas dessa forma tendem a entender tudo o que não consigam identificar imediatamente consigo mesmas e com seus valores como “inimigos” em potencial, como algo que, não representando uma identidade consigo mesmas, representa uma oposição a eles e às suas existências, um inimigo, um adversário, algo a er eliminado. É algo semelhante ao que o psicólogo suiço Carl Gustav Jung chamou de “rebaixamento do nível mental”, um estado psíquico caracterizado por pouca imaginação e estreiteza conceitual. Essas pessoas vivem em constante sofrimento existencial e entendem qualquer crítica como uma ameaça à sua própria existência, por isso são tão aferrados aos seus posicionamentos políticos, aos seus times, à sua sexualidade. Muitas vezes esses são os únicos alicerces do edifício psíquico desses indivíduos.
Quando percebem, por algum motivo, que seu alicerce não vai bem, tendem a vivenciar estados profundos de desesperança, fatalismo, hostilidade difusa e baixa-autoestima. Sem um grupo identitário novo ao qual possam se ligar, ampliando seu senso de pertencimento e reforçando suas auto-imagens sociais, perdem seus referenciais identitários, tendem ao suicídio.

O ato e o objetivo
Nem toda tentativa de suicídio tem como objetivo o óbito. Às vezes a voz calada está apenas gritando por socorro. Quando fui convidado pelo canal Unidiversidade, da Fiocruz, para falar sobre novos caminhos para a masculinidade, conheci o Dr. Mauro Barbosa que me deu a melhor metáfora sobre a potência do grito feminista contemporâneo: imagine uma pessoa sufocada, por uma forte mão, por anos e anos. Impossibilitada de falar, impossibilitada de ter vez e voz, toda expressão relegada a subterfúgios, toda vontade submetida a outras vontades, por toda a vida. Imagine que, por algum motivo, alguém ou algumas pessoas, retiraram aquela mão opressora de cima dos lábios dessa pessoa. Ah, ela não vai agradecer em voz baixa, não! Ela não vai falar manso! Ela vai gritar, ela vai berrar! Finalmente ela vai viver em voz alta!
A intenção de muitas tentativas de suicídios é justamente fazer a ponte não entre a vida orgânica e o mistério profundo do devir pós-orgânico, mas fazer a ponte, dar o salto, entre a sobrevivência submissa e o voltar a viver - talvez o começar a viver! Por isso também é necessário romper o silêncio.
...a própria ideia de “resiliência” como submissão silenciosa e eterna a pressões laborais e existenciais crescentes, é revestida estrategicamente de uma aura “heróica”. Na cultura corporativa contemporânea, se submeter é ser “herói”.
Comportamento limite
Aprendemos, através dos estudos mitológicos de Karen Armstrong, que uma das funções do mito é falar sobre os assuntos-limite, é estruturar nossa relação com aquilo que nos define, orienta e cerceia. Pois bem, a maioria dos comportamentos suicidas são comportamentos de aceitação de riscos, comportamentos feitos para testar limites.
Claro que para fazer um teste sincero dos limites, não devemos ter certeza dos resultados. O resultado deve estar dentro de uma área borrada, de incerteza e insegurança. Existe aí o tema do “parasuicídio”, o suicídio de alguém que está testando os limites estabelecidos pelo bom-senso, pelas leis, família, sociedade ou crenças.
Como trabalhamos no nosso encontro Mito e Mente Hermes, a incerteza, a insegurança e o medo são instrumentalizados como técnicas de venda ao extremo, fazendo do sujeito que se submete a essa insegurança estrutural difusa e esmagadora, o comportamento ideal, a atitude esperada por alguém que “resiste”, que é “resiliente”. Como trabalhamos no nosso encontro Mito e Mente Atená, a própria ideia de “resiliência”, como submissão silenciosa e eterna a pressões laborais e existenciais crescentes, é revestida estrategicamente de uma aura “heróica”. Na cultura corporativa contemporânea se submeter é ser “herói”. Uma reversão perversa que trabalhamos melhor no nosso encontro Mito e Mente Ares.
Resposta ética
Dá novo fôlego saber que, atualmente, a ética do suicídio tende a não mais culpabilizar a vítima. Na realidade a própria ideia de “culpa” saiu do centro das atenções. A preocupação hoje em dia está mais em perceber as motivações mais recorrentes para o suicídio e, então, combatê-las, evitá-las.
Cada ser é único em sua psique, história e aspirações. Mesmo pessoas que vivem nos mesmos círculos sociais percebem e registram de formas diferentes suas experiências e a forma como cada uma delas os afeta. Cada um sabe como, onde e de que maneira o calo aperta.
A forma mais humana e responsável de lidar com esse tema é a escuta sem julgamento, romper a barreira do silêncio e continuar rompendo ela através de perguntas. Perguntas podem até ser invasivas, colocar em xeque muitas das certezas e concepções que o sujeito possa ter sobre a vida, mas a pergunta não impõe, a pergunta se importa.
Escuta sem julgamento
A forma mais humana e responsável de lidar com esse tema é a escuta sem julgamento, romper a barreira do silêncio e continuar rompendo ela através de perguntas. Perguntas podem até ser invasivas, colocar em xeque muitas das certezas e concepções que o sujeito possa ter sobre a vida, mas a pergunta não impõe, a pergunta se importa. Através da pergunta podemos dar um sentido para o silêncio, um sentido para o fluxo que o silêncio contém.
Ação e performance, o teatro social
Toda ação social é performática. Estamos imersos em papéis sociais que representamos melhor ou pior ao longo da vida. Eles representam a nossa “persona” (palavra grega para “máscara). É preciso que essa máscara seja porosa, que possamos respirar através dela.
Essas máscaras, de filho, filha, profissional, irmão, amiga, são inevitáveis, e é imprescindível que não façamos delas forcas ou mordaças. Do contrário podemos nos sentir frustrados pelos extremos. Seja porque nunca saímos daquele personagem que nos impõem, seja por nunca entrarmos no personagem que esperam de nós.
Por isso no estudo do silêncio e do suicídio que fiz para essa apostila Mito e Mente Hades, fui estudar os diferentes silêncios na teoria do teatro.
Teoria dos Silêncios
Na teoria do teatro temos diferentes formas de silêncio.
O silêncio natural. O primeiro com o qual entrei em contato foi o silêncio considerado “natural”, as pausas entre as palavras, tempo natural da respiração, silêncio que não tem, em si, um significado profundo. A não ser nos casos bem diretos em que nega, pela sua presença alongada ou por algum pantomima (mímica cênica), o dito anterior. A esse silêncio chamei de “natural”.
O silêncio soluçado. Mas existe também a dramaturgia do silêncio, o naturalismo de um Tchekhov, onde personagens não ousam ou não podem verbalizar seus pensamentos em cena. Há ali um interdito, um tabu, uma relação psíquica de anseio e privação ligada à comunicação. São obrigados - ou se entendem obrigados - a se comunicar por meias palavras, a um falar sem sentido que muitas vezes denuncia uma pura função fática, a pura necessidade de manter próximo um interlocutor. Essa fala, entrecortada e sem significado em si, talvez prenuncie o início da quebra do silêncio, ou pelo menos denuncie a carência de um contato social mais significativo. A esse silêncio chamei de “soluçado”.
O silêncio óbvio. Para além desse silêncio temos também o silêncio decifrável, aquele cujo sentido é óbvio, mas toca um tema tabu que incomoda aos presentes, então permanece recalcado, represado. Quantas vezes não cerceamos o caminho para fora desse silêncio com piadas, mudanças de tema e assunto, desvios vários da atenção? A força maior está sendo feita sempre de dentro pra fora, no sentido de romper a barreira de aço que nos força a gravitar pela superfície do cotidiano, sem nos aprofundarmos, sem nos importarmos, submersos na frágil ilusão de “invulnerabilidade” que a velocidade do pensamento passa para o lento e gástrico sentimento. A esse silêncio chamei de “óbvio”.
O silêncio jargão. Existe um silêncio extremamente falante, inconvenientemente falante. Ele é completamente preenchido por jargões, palavras de ordem e repetições superficiais de slogans e memes. Ele denuncia imediata e claramente a alienação (desconexão) entre a fala e o contexto, entre a experiência e o rótulo, entre o conhecimento e a generalização. É o silêncio que vemos aí, berrando nas ruas palavras de ordem, impedindo qualquer contato. Ele também é um sintoma de profundo sofrimento psíquico. O sujeito submerso nesse tipo gritante e histriônico de silêncio, em geral, está pedindo socorro, para aquela única pilastra que sustenta todo o edifício de sua identidade e que, por algum motivo, ele vê a perigo. É difícil abordar esse silêncio, muito difícil. Principalmente porque ele não consegue ficar calado. A esse silêncio chamei de “jargão”.
O silêncio metafísico. Existe um silêncio que é resultado de um sentimento de arrebatamento diante dos mistérios da existência, um silêncio que é um calar-se diante do impenetrável dos mistérios do universo. Talvez a esse silêncio se referissem os gregos quando diziam que não se deveria falar sobre Hades. Não porque estaríamos invocando ele, apressando nosso inevitável destino ou causando uma “vitória precoce do instinto de morte” como diria Freud, mas porque, em última instância, esse mistério é insondável. Esse silêncio também precisa ser quebrado, pois, se não transformado em poesia, literatura ou conversa, pode ser extremamente opressor. A esse silêncio chamei de “metafísico”.
As duas experiências limites que trouxeram Hades para a superfície, o amor e a dor, foram experiências de profunda ressignificação e ampliação do Self de Hades.
Resgate do Self
Hades só subiu ao reino dos vivos duas vezes. Uma pelo amor a sua sobrinha Koré - que viria a transformar-se em sua esposa Perséfone - e outra pela dor da flechada que recebeu no ombro, causada por seu sobrinho Hércules. Em todo o resto da mitologia ele permaneceu nas sombras de seus domínios, e era impossível discernir exatamente a natureza de suas ações por lá.
É difícil trazer essa energia que Hades representa para a luz, para a “consciência”. É mesmo raríssimo conseguir esse feito. Exige coragem para lidarmos com a verdade dessa potência do inconsciente, com nossas sombras, recalques e medos. Mas é através desse enfrentamento que Hades é reestruturado, modificado, “humanizado” se quisermos uma metáfora esperançosa.
As duas experiências limites que trouxeram Hades para a superfície, o amor e a dor, foram experiências de profunda ressignificação e ampliação do Self de Hades. Já falamos anteriormente sobre essas experiências e seus significados, então aqui falaremos apenas das mudanças no Self social.
Self Social
Na sociologia, diferentemente do conceito que encontramos na psicologia analítica, o Self é um conjunto relativamente estável de percepções que alimentamos sobre quem somos. Esse conjunto é baseado em expectativas sociais e organizado em torno de um autoconceito. O autoconceito é formado pelas ideias e sentimentos que temos sobre nós mesmos.
Quando Hades sobe ao Olimpo para ser curado da flechada de Hércules que, por conter o sangue-veneno da Hidra de Lerna, causava uma ferida incurável e eternamente aberta, ele foi recebido com carinho e atenção, com respeito e dedicação por Apolo. Foi o próprio Apolo, deus conhecido por sua arrogância e petulância, quem cuidou pessoalmente da ferida e realizou o milagre da cura do incurável.
Para a lógica dualista de uma mente polarizada, o deus da luz Apolo, ao encontrar com o deus invisível Hades, deveria entrar em conflito, debate, discórdia. Mas o mito nos mostra o oposto. Apolo atende imediatamente seu tio Hades, com respeito e seriedade.
Como lembramos, o motivo da flechada de Hércules contra Hades foi a recusa, do deus dos mortos, a liberar seu cão Cérbero, para que fosse levado até Euristeu em Micenas, como realização do seu último trabalho. Hades estava inflexível. Sua inflexibilidade expôs uma ferida, uma vulnerabilidade insuportável tratada por Apolo. Voltando para casa Hades libera Hércules para levar Cérbero, seu cão de três cabeças, como forma de cumprir sua última tarefa. Desde que o sobrinho depois trouxesse de volta o guardião dos “ínferos” (regiões inferiores). Depois da ferida Hades, recebido com respeito e reverência por Apolo, tornou-se flexível.
O que esse mito do deus da morte fala a você?
Dar voz a Hades é perguntar e ouvir! Apenas a pergunta resgata do silêncio a torrente genuína do discurso de forma respeitosa e solene, com a seriedade que ele exige.
A imagem de espelho
Grande parte do simbolismo do mito de Hades está no fato de que ele é invisível, de que ele pode nos rondar dia e noite sem que tomemos conhecimento disso. O sociólogo Charles Cooley criou o termo “imagem de espelho” para designar a maneira como pensamos que outras pessoas nos vêem e avaliam. Essas ideias que fazemos do que os outros pensam sobre nós em geral estão alicerçadas em ideias gerais sobre nossos status sociais, sobre os papéis sociais que ocupamos etc. Ser mãe é, em grande parte, recorrer a ideias culturais sobre mães e é contra esse padrão generalista que medimos nosso sucesso e fracasso diante da vida.
Pode parecer igualmente fascinante ou assustador quando estamos muito distantes dos padrões que julgamos que esperam de nós. “O que deveríamos ser” pode ser definido sociologicamente como “eu ideal”. Ele é uma integração entre nosso autoconceito e o “eu social ideal”, aquilo que os outros esperam de nós. A relação de proximidade ou afastamento entre como nos vemos (autoconceito) e o que deveríamos ser (self ideal) é o que forma a nossa auto-estima.
Tudo isso deve ser trazido à consciência quando estamos genuinamente fazendo nosso melhor para romper a barreira do silêncio, quando estamos trazendo Hades à superfície, mesmo que por alguns segundos. Afinal, às vezes, mesmo o independente, todo-poderoso e autossuficiente deus do silêncio, precisa de cuidado.
Estamos o tempo todo falando, na consciência. Dar voz a Hades é perguntar! Apenas a pergunta resgata do silêncio a torrente genuína do discurso de forma respeitosa e solene, com a seriedade que ele merece e exige.
Na perigosa e necessária jornada de reestruturação do Self, como você pode romper o silêncio?
Por Renato Kress Antropólogo e Cientista Político Especialista em Psicologia Analítica Criador dos encontros Mito e Mente Coach Pessoal e Profissional

segunda-feira, 21 de abril de 2014

E se pensássemos sobre a Páscoa?

Antes de ser o feriado dos coelhos e ovos de chocolate a páscoa significava, para os católicos, a libertação de todos os que estavam separados de Deus pelo pecado, comemorada junto com o dia da ressurreição de Cristo após a crucificação. Antes disso ela significava, para os judeus, a "Pessach", ou a passagem do anjo da morte que levou os primogênitos egípcios e poupou os primogênitos judeus, abrindo caminho para a fuga dos hebreus (judeus) do Egito e a sua "libertação" da escravidão. Ainda muito antes disso, na Babilônia (antiga Suméria), na mesma época do ano, comemoráva-se o aniversário/ritual da deusa Ishtar (pronuncía-se "Easter"), deusa da fertilidade, da procriação e do constante renascimento da colheita, das flores e do campo. Os símbolos da deusa Ishtar (também conhecida como Inana) eram o coelho, símbolo da promiscuidade criadora e da fertilidade, e o ovo cósmico, que, ao quebrar-se, liberou toda a força e potência criadora do mundo. Essencialmente era uma festa para comemorar a vida!

A esquecida mensagem do vândalo

Temos, na nossa comemoração do que chamamos de Páscoa, a tradição de darmos ovos de chocolate - inexplicavelmente trazidos numa cesta por um coelho bípede - para crianças. Alguns ainda se lembram da "libertação" de um revolucionário (vândalo) judeu que pregava o amor universal, mas a instituição que procura falar em seu nome nem sempre lembra-se de levar a mensagem do jovem que genial e humanísticamente reuniu todo o pentateuco em apenas um mandamento: "Amai ao próximo como a ti mesmo.". Quase ninguém se lembra de Ishtar (embora todos os povos de língua inglesa se refiram à data usando o nome da deusa).

Ishtar, em inglês "Easter", deusa da vida.
Crianças tribais

Quase todos nós nos escondemos (ou nos perdemos) dentro de nossas casas, cobrindo os umbrais de nossas portas com nossa indiferença cega, esperando poder salvaguardar nossas famílias, nossas crianças e a nós mesmos da vinda do "anjo da morte", do terror e da violência que nos visita "lá fora". Na nossa ilusão de pluralismo, ainda somos temerosas crianças tribais.

Fronteiras e zonas de conforto

Criamos nossas portas e acreditamos nelas. Acreditamos que enquanto estivermos "dentro" nos protegeremos dos perigos e incertezas do caos "lá fora". Acreditamos que existe realmente a possibilidade de sermos "escolhidos" ou "preferidos" diante do medo, da morte e da violência que não atravessará nossas fronteiras íntimas e fará vítimas apenas entre os "impuros", os "maculados" pela preguiça, pela pobreza, pela ira de um "Deus" que é justo com os "justos" e injusto com os "injustos". Um "Deus" que poderíamos chamar de ego, ou de comodismo.

Negação e inflação do ego

Criança expulsa de casa
pela Polícia política do Governo
do Rio de Janeiro. Ao fundo a
Catedral da Cidade, que não
abriu suas portas, mantendo
várias famílias "abrigadas"
no seu estacionamento, ao relento.
Foto de Paula Kossatz
Ainda que toda a realidade urre de dor em nossos ouvidos, ou ainda que arrombe nossas retinas, insistimos, como crianças mimadas, que as condições de vida das demais pessoas são consequências únicas das atitudes dessas mesmas pessoas, assim como as nossas vidas dependem unicamente de nós e nossos atos. Insistimos infantilmente em separar o "dentro" e o "fora", o "nós" e os "outros", a "ordem" e o "caos", o "bom" e o "ruim". Ainda alimentamos a fantasia egóica de sermos "escolhidos".

A inconveniente consciência

Sabemos, intimamente, que isso é uma grande mentira! Que um pobre palestino, uma criança negra na Maré e um neto de um magnata não têm as mesmas chances em suas jornadas.

Sabemos, cada vez mais, que o valor de uma vida tem sido medido pelo seu crédito bancário. Sabemos que o medo que instauramos através do terror policial "lá fora" é o mesmo medo, a mesma onda, que rebate num rufar cardíaco nos nossos espaços "aqui dentro". É o medo que vende remédios contra a ansiedade, armas contra a violência, grades, portões e armaduras para as polícias urbanas. É o medo que impede a abertura de uma Catedral para receber refugiados de uma guerra pelo lucro, a mesma guerra de sempre. É o medo da repercussão na mídia que fez com que a polícia avançasse um pouco menos do que pretendia, quando empurrava  mulheres, crianças, mães, pais e recém-nascidos para longe da vista, numa verdadeira via crucis pela cidade do Rio de Janeiro, durante a comemoração da Páscoa. O medo de agredir algum cidadão de classe média que estava se colocando entre as famílias e o avanço da polícia foi o que impediu uma chacina. O medo de ser maculado pela presença dos "impuros" fez com que um representante da Igreja ligasse caixas de som, de madrugada, para cantar no máximo volume, tentando expulsar a "chaga", o "estigma", para longe da "imaculada" casa de um "Deus" esquizofrênico, que ainda não tornou sagrada a vida e sim as relações que multiplicam o lucro.

Esperança, um comichão cardíaco

Esperamos que o Papa consiga reverter essa relação e temos fé num sujeito, o que é muito salutar desde que "oremos e vigiemos". Ainda precisamos de muita humildade e senso de realidade para percebermos que a fé é o combustível para empurrar a montanha, que o combustível não age sem a centelha divina que carregamos em nós: o potencial para amarmos ao próximo como a nós mesmos. Aquele mesmo papo igualitário de perdão e união, a mesma "boa nova" do "vândalo" de Nazaré.

Me pergunto se algum dia, ao invés do medo, comemoraremos com Jesus, com Adonai, Ishtar, Oxalá, Budha, Brahma e Rá, alguma real Páscoa, o ressurgimento, através do ovo cósmico palpitando em nossos peitos, da vida.

Texto por Renato Kress

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Histórias, ou A cura pelo plantio de poemas íntimos

"Conhecer histórias é psicologicamente terapêutico per se. É bom para a alma. Os discursos econômico, científico e histórico são modalidades de histórias que frequentemente fracassam na tentativa de dar à alma aquele sentido imaginativo que ela busca, para a compreensão de sua vida psicológica." - James Hillman

Sementes
Era uma vez uma sensação. Ela vinha toda vez que eu lia um mito, um conto de fadas, uma fábula. MAs ela vinha também quando eu conversava com amigos, quando lia um jornal ou um livro de história. Se eu pudesse descrevê-la fisicamente seria como um dedilhar íntimo, um toque na alma.

É claro que a sensação variava de acordo com o que estivesse preenchendo minha alma naquele momento. Haviam nítidas unhas rasgando as minhas entranhas quando minha vida estivesse girando ao redor de ruminar fracassos, assim como um carinho singelo no peito quando eu estivesse me despedindo de um ente querido ou de uma fase da vida que já não é mais minha.

A identificação com as histórias leva a isso. A essa sensação íntima que, com o tempo, tende a se transformar em sentimento, em pensamento, talvez até intuição. Conhecer histórias é terapêutico porque nos leva a conhecermos melhor a nós mesmos.

Mudas

Muitos dos nossos sentimentos, pensamentos e intuições mais profundos são bloqueados pela velocidade alucinante do nosso cotidiano. Então vamos ao cinema, lemos um livro, paramos numa mesa de bar para conversar com nossos amigos. O que há de comum nesses momentos? Esperamos que nos contem histórias, que nos tragam um mundo que não nos pertence para que possamos, com a devida distância, observar - quase que como um pressentimento - o que daquilo tudo nos toca e nos diz algo. E se diz, com certeza, também é nosso, de alguma maneira.

Tanto é nosso que levamos para casa e deixamos que aquela situação, aquele pensamento ou mesmo até aquela palavra - que talvez não significasse tanto para quem a disse - se desenvolva dentro de nós e nos inquiete por dentro. É dessa inquietação que surgem as descobertas, as soluções mirabolantes, os "insights".

Troncos
Nenhuma idéia genial veio de uma mente tranquila. Quem conhece bem os meandros e as batalhas mentais com deuses descritos por Siddartha Gautama até que ele conseguisse atingir o Nirvana sabe muito bem disso! A mente criativa é um instante em que, no meio de um tornado, se vislumbra o olho do furacão. Dorothy que o diga!

Quem volta do mundo de "Oz", desse espaço das descobertas e das conclusões que nos permitimos quando saímos do lugar comum da repetição do cotidiano, nunca volta o mesmo. Quem volta da "Terra do Nunca" ou de "Nárnia" absorve tanta experiência em um espaço de tempo tão minúsculo que é como se tivesse envelhecido sem envelhecer, é como se tivesse ganho a sabedoria sem ter tido a experiência. Para quem esteve lá, o tempo cronológico não passou.

Galhos
Absorve-se o conhecimento sem a maturação. É como se ativássemos um mecanismo ancestral dentro de nós mesmos e, a partir dali, uma nova fonte de energia e criação brotasse. Imagine, por exemplo, conhecer todos os mecanismos de roldanas, pesos e fontes elétricas que fazem um elevador funcionar. Imagine ser capaz de desmontar e remontar esse elevador, ou mesmo de criar ele a partir de peças soltas. É como aprender uma nova língua ou uma nova cultura, uma nova forma de ver o mundo através da qual, por alguma "mágica", tudo se tornasse mais real e, ao mesmo tempo, mais mágico. É tomar a magia da "criação de elevadores" para si.

Conhecer histórias, contar e vivênciar histórias é tornar-se o "Grande e Poderoso Oz", mesmo sabendo que não há magia e que quem souber olhar atentamente para o "truque" não verá truque nem mágico, mas sim um grande impostor, que se admite impostor - sem nenhum poder mágico real - mas que, ainda assim, faz a mágica dentro de nós!

Afinal, o Leão Medroso recebeu uma dose enorme de "coragem líquida" e tornou-se o rei dos animais, o Espantalho sem cérebro recebeu seu "novo cérebro" recheado de alfinetes e tornou-se rei da Cidade Esmeralda e o Lenhador de Lata recebeu seu "coração de almofada vermelha" e tornou-se o afetuoso guardião da cidade dos Quadlins.

Novas sementes
Conhecer novas histórias é tornar a vida psicologicamente rica e afetivamente saudável. Quem conhece a história do luto, as razões por trás das tradições do uso da cor negra, as formas de "beber o defunto" no interior do Brasil, as histórias por trás dos sepultamentos desde a pré-história, não foge da dor encapsulando a alma em soluções químicas ou farmacológicas. Quem conhece as razões do luto entra naquele estranho mundo da perda e, como recompensa, renasce transformado. Psicologicamente quem conhece o "era uma vez" da morte efetivamente faz a integração natural dos conteúdos significativos da experiência que tivemos em vida, com aquela pessoa.

Quem conhece histórias, ao invés do bate-estaca mórbido da ferocidade das ondas intermináveis de tarefas e dias, torna a vida uma poesia recheada de sempre novos significados.

por Renato Kress

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Mito e Mente II - Ártemis, luar selvagem

Deusa do limiar entre a natureza e a cultura, deusa das crianças, do estado selvagem e das regras da natureza. Tutora das crianças pequenas, ainda em "estado de natureza", a poderosa deusa da lua, intermediadora entre a cidade o campo, entre as cercanias limitadas da consciência e todo o infinito universo do inconsciente.

Bem vindos ao mundo do limiar, aos domínios de Ártemis!

Bem vindos ao quinto encontro Mito e Mente II! 


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INVESTIMENTO:
R$ 53,00

Com direito a:
> Participação no evento
> Contação dos mitos de Ártemis
> Apostila do evento
> Certificado de participação
> Debates e trocas

O investimento deve ser feito com antecedência no Banco do Brasil
Agência 3516-5
Conta Corrente 14.486-x
Cpf: 052652497-96
Renato Kress

== ATENÇÃO ! ==

A fim de que sejamos sustentáveis e evitemos o desperdício, somente serão impressas as apostilas e os certificados dos participantes que confirmarem o pagamento

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QUEIJOS E VINHOS:

O cardápio do terceiro encontro Mito e Mente II será:

Vinhos:
. Alfredo Roca - Malbec (Argentina 2011)
. Sol de Andes - Carmenere (Chile 2011)

Queijos:
. Sardo
. Gouda
. Minas (com orégano e azeite)
. Gruyere

Uvas:
. Verdes
. Roxas

O valor pra a porção de queijos + uma taça de vinhos + uvas é de R$15,00

Demais valores avulsos no cardápio do evento.
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APRESENTADOR E DEBATEDOR:

Renato Kress
Antropólogo, cientista político, especialista em psicologia analítica, diretor do Instituto ATENA e criador dos treinamentos "A Jornada do Herói", "A Arte da guerra Oriental", "Estratégia em Ação" e também do Projeto Mito e Mente I, apresentado através de oito encontros, no ano passado.

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Dando prosseguimento ao sucesso do projeto original "Mito e Mente" do Instituto ATENA que, no ano passado, apresentou oito (8) temas do nosso cotidiano através de vinte e quatro (24) mitos gregos, apresentamos o projeto Mito e Mente II!

Nos encontros Mito e Mente II apresentaremos novos mitos, um a um, com contação dos mitos por completo, espaço para debates, apostilas e certificados de participação!

(Veja as fotos dos eventos anteriores!)
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Será um prazer recebê-los no Espaço Habitat Carioca nessa próxima quinta -feira!

O Espaço Habitat Carioca fica a menos de 100m da saída do metrô Glória, na rua Benjamin Constant número 48

domingo, 15 de setembro de 2013

Hércules, a determinação


Ainda que várias histórias sejam recontadas sobre outras histórias relidas, ainda que a memória esvoace os detalhes íntimos das mais fantásticas fábulas, ainda assim, há um quê que se perpetua e transcende os pormenores perdidos no tempo.





Segundas leituras

Então não se preocupem em demasia com o nexo narrativo. Ao menos não tanto quanto você se preocuparia com o nexo simbólico. O mito é como a realidade, tem uma aparência imediata, uma primeira leitura de atos, nomes e datas, e várias camadas de novas leituras, recheadas de motivações, sentimentos, ardis, emoções e intuições. São essas segundas leituras que nos interessam nos encontros Mito e Mente. 

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No último encontro Mito e Mente II vimos a infância nobre, a tragédia pessoal e familiar, a determinação e os aprendizados de Héracles em seus doze trabalhos. Foram duas horas de mito puro, percepções simbólicas e, no final, dinâmicas e debates de interpretação em grupo. Tudo isso regado a boas doses de queijos e vinhos, no maravilhoso Pub do Espaço Habitat Carioca!

Aqui no blog não cabe, infelizmente, a atmosfera mágica e íntima da contação do mito, das interpretações que fizemos e menos ainda a experiência da noite de símbolos entre vinhos chilenos e argentinos, uvas verdes e cubos de gruyere, sardo, gouda e minas, mas podemos dar uma ideia transcrevendo uma pequena parte da apostila diretamente para o blog.
Senhoras e senhores, bem vindos aos 





Os doze trabalhos de Héracles

Os famosos doze trabalhos são, pois, as provas as quais o reis de Argos, o covarde Euristeu, submeteu seu primo Herácles, por expiação pelo crime familiar, por ter assassinado - ainda que por um ardil dda toda-poderosa deusa Hera - sua primeira esposa Mégara e seus filhos.

“Num plano simbólico, as doze provas configuram um vasto labirinto, cujos meandros, mergulhados nas trevas, o herói terá de percorrer até chegar à luz, onde, despindo a mortalidade, se revestirá do homem novo, recoberto com a indumentária da imortalidade.” – Junito Brandão

Mas calma, querido participante dos encontros Mito e Mente, porque o couro do nosso querido herói ainda tem muito que ser curtido até lá...

O número 12
Nenhum número é por acaso na mitologia. Nem mesmo as três deusas amigas de Hera (três é um número típico para grandes divindades femininas na Grécia), nem muito menos o número doze!

Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, no seu maravilhoso Dicionário de Símbolos: “é o número das divisões espaço-temporais, produto dos quatro pontos cardeais pelos três níveis cósmicos. Divide o céu, visualizado como uma cúpula, em doze setores, os doze signos do zodíaco, mencionados desde a mais alta antiguidade (...) Doze simboliza, pois, o universo em seu desenvolvimento cíclico espaço-temporal. O duodenário, que caracteriza o ano e o zodíaco, representa a multiplicação dos quatro elementos, água, ar, terra e fogo, pelo três princípios alquímicos, enxofre, sal e mercúrio, ou ainda os três estados de cada elemento em suas fases sucessivas: evolução, culminação e involução. (...) Também em torno da Távola Redonda do rei Artur sentavam-se doze cavaleiros. (...) Doze é, por conseguinte, o número de uma realização integral, de um fecho completo, de um uróboro.


-I-
O Leão

O primeiro trabalho que Hera inspirou Euristeu a pedir a Herácles foi a caçada ao Leão de Neméia, uma fera invencível e completamente invulnerável que devastava a região montanhosa da Neméia.

O Leão era neto de Tífon – o monstruoso dragão/serpente que seu pai Zeus teve de fulminar para tomar posse de seu trono entre os deuses. Tífon era tão grande que, ao ser enterrado nas entranhas da terra após sua derrota, formou com seu corpo imortal, uma cordilheira.
Hércules seguiu para a região da Neméia e não teve problemas em encontrar o rastro de sangue e a pilha de cadáveres que levava até a caverna da fera. Preparou-se para o confronto iminente e, assim que avistou o gigantesco animal que tinha a sua altura (três metros de altura, nas quatro patas!) tentou matá-lo com as flechas presenteadas por Apolo. Nada feito.

Hércules percebeu, ao longo de sua rotina diária de batalhas com a fera, que o Leão estava sempre bem disposto e alimentado, o que lhe causou uma grande estranheza porque ele, o herói, estava impedindo que o leão saísse para caçar justamente para tentar matá-lo de fome. Depois de alguma pesquisa pelas cavernas o herói descobriu o motivo: a caverna tinha outras saídas. Todas foram devidamente lacradas por pedras colossais e então o herói decidiu que era hora de “matar ou morrer” naquela inglória primeira tarefa e investiu com tudo contra o monstro.

Depois de muitos arranhões, cortes e mordidas profundas e abalos estrondosos de socos e pontapés trocados, caíram os dois, Herácles e o Leão, arfando pesadamente, um do lado do outro. Foi quando o herói olhou para o leão pensando em quem teria “mais fôlego” para ir até o fim, fosse qual fosse. Então ele percebeu: “Esse desgraçado respira!”. Mais rápido que o raio de seu pai, Herácles saltou para cima do Leão e – inaugurando o golpe “mata leão” – sufocou o animal até a morte.

Percebendo que, depois do tempo gasto para conseguir eliminar o animal, seria quase impossível arrastar todo o seu gigantesco peso a tempo até Euristeu. Viu-se diante de um novo problema: carregar a prova da morte do Leão!

Para isso abriu a pele do Leão com as próprias garras deste e, ainda por cima, fez da pele invulnerável do animal sua armadura cobrindo o peito, os ombros, a cabeça e toda a região das costas! Agora todos os seus desafios e desafiantes teriam de ter a hombridade de atacar de frente!

Ao aparecer para Euristeu com a gigantesca cabeça de leão com suas afiadas presas ao redor da própria cabeça, cruzando os poderosos braços e sorrindo, toda a corte de Argos testemunhou o pulo vergonhoso que o monarca deu, para se esconder dentro de um vaso de bronze, colocado ao lado do trono.


-II-
A Hidra


O segundo trabalho de Herácles era livrar a região de Lerna, um pântano pestilento, da Hidra, outro dos filhos de Tífon! A hidra era uma gigantesca serpente cujo número de cabeças varia entre três a doze. De qualquer forma a cada vez que a espada que Hermes deu ao nosso herói decapitava uma cabeça, duas novas nasciam em seu lugar. Ainda que começasse com três cabeças não demoraria muito para chegar em doze, ou mais.

Nessa jornada o acompanhou seu sobrinho Iolau, filho de seu irmão. Iolau portava uma tocha para iluminar os caminhos fechados do pântano e auxiliar Herácles na batalha.

Não demorou para Herácles pedir a tocha emprestada para “cauterizar” os pescoços logo depois de decapitá-los. Assim a Hidra foi vencida. Uma de suas cabeças era imortal e não importava quantas vezes fosse cortada – ou em quantos pedaços! – ela sempre voltava e se refazia. Então Herácles pegou a maior pedra que pôde encontrar no pântano e esmagou essa última cabeça.

Do corpo da Hidra saiu um sangue negro que, escorrendo por um rio próximo, fez todos os peixes boiarem, mortos, à superfície. Entendendo a potência daquele veneno, Herácles embebeu todas as suas flechas nele e, com isso, se tornou um inimigo ainda mais mortífero.


-III-
O Javali

Quando carcaças gigantescas de diferentes animais teoricamente indestrutíveis começaram a ser lugar comum em Micenas, Euristeu resolve, sempre inspirado pela divina Hera, pedir que Herácles traga um desses monstros vivo!

Havia na Calidônia, região da Hiperbórea (acima da “casa” do vento Bóreas, que é o vento que vem do norte), um enorme javali que, para variar, destruía tudo o que estivesse ao seu redor.

Hércules o domou pelas presas e o trouxe, arrastado e se debatendo, à presença de Euristeu, que, à vista do gigantesco animal negro com suas mandíbulas e língua vermelho-sangue, banhou seu rico trono com sua real urina.


-IV-
A Corça

Bem, se força física não parece ser um problema para o grandioso filho de Alcmena. O jeito é recorrermos a outros tipos de tarefas. Que tal correr? Correr mais do que uma corça, que é o símbolo mítico da velocidade, da agilidade e da elegância e graças femininas. E que tal uma corça sagrada, dedicada à deusa Ártemis, deusa das caçadas e dos animais selvagens? Parece mais interessante, não? Pois é o que Euristeu manda Herácles fazer, e que ela seja trazida viva!

Após chegar na região de Cerínia, uma região inteira de floresta consagrada à deusa Ártemis, o poderoso campeão grego passou um ano correndo atrás da corça. A bem da verdade os primeiros dois meses foram apenas para aprender a diferenciar o barulho do vento da passagem do animal. Daí em diante foi um treinamento diário, constante, ininterrupto, de corrida. Ainda assim o herói só conseguiu pegar o animal arisco porque foi dócil e esperou até que ele entrasse num rio para ir pegá-lo.

Finalmente se apossando da corça, Herácles recebeu a visita inesperada de seus dois irmãos divinos: Apolo e Ártemis, a dona da corça. Nenhum dos dois parecia disposto a deixar Herácles levar a bichinha para o insidioso Euristeu.

Herácles teve de se comprometer em não deixar que a machucassem para que os deuses o deixassem seguir viagem.


-V-
As Aves

Os trabalhos teriam de ser cada vez piores e a dupla Hera e Euristeu não pouparam esforços em suas pesquisas para enviar Herácles aos piores cantos do mundo até então conhecido. A nova modalidade, visto que o herói havia ido bem em matar monstros em terra e água e, também em trazer vivos seres fantásticos, era matar aves. Mas não aves comuns, claro!

As aves do lago Estínfalo eram dezenas de aves com penas de bronze (invulneráveis a flechas normais) que voavam a um quilômetro de altura e se alimentavam de carne humana. A queda de suas penas cuidava de matar pessoas e destruir propriedades ao redor do lago e, não fosse isso problema suficiente, elas se escondiam durante o dia em vários pequenos orifícios em cavernas próximas ao lago. Orifícios pequenos demais para que o gigantesco filho de Zeus conseguisse enfiar as mãos, um a um.

Chegando na região do lago, Herácles começou a fazer barulho e a bater palmas para afugentar as aves de seus esconderijos. Às vezes conseguia fazer uma ou outra sair por alguns instantes e, retesando eu arco com flechas embebidas no venenoso sangue da Hidra, matava-a. A tarefa estava lenta demais. Provavelmente mais lenta do que o tempo que as próprias aves levavam para se reproduzir.

Herácles para, à beira do lago, e pensa no que fazer para afastar aquelas aves todas de uma vez só. Então Hefesto, seu irmão divino e deus da força e dos metais, lhe envia a idéia de aproveitar as inúmeras penas de bronze ao redor e fazer com elas um chocalho. Sacudindo-o no ar sobre a superfície do lago o herói tem a grata surpresa de criar um barulho tão insuportavelmente alto e irritante que as aves todas lançam vôo imediatamente! Ele não perde tempo e as alveja, uma a uma, com suas flechas envenenadas!

De brinde ainda leva novas “ponteiras” para suas novas flechas no futuro: as próprias penas das aves mortas.


-VI-
Os estábulos de Augias

Augias era o gigante rei filho de Hélios, o luminoso deus-sol que tudo vê, e foi o próximo escolhido de Hera para ser agraciado pelos serviços de Herácles. Mas dessa vez nada glorioso como matar grandes feras que acabavam servindo de troféus para o poderoso herói enquanto cruzava a Grécia ou sendo incrementadas ao seu já vasto arsenal. A tarefa era se apresentar a Augias para limpar seus estábulos, carregados com três décadas dos estrumes de bois, cabras e cavalos. Nada glorioso, heróico ou engrandecedor para seu ego.

Herácles tinha um ano para cumprir a tarefa, como teve com cada uma das anteriores e, checando cada espaço do reino de Augias e fazendo pequenas tarefas aqui e ali fazendo o máximo para não ser notado, se apresentou ao rei com uma proposta: limparia todos os estábulos em um dia! Isso, é claro, em troca de um décimo do rebanho do grande rei. Se não conseguisse ficaria como escravo de Augias após servir a Euristeu.

Gargalhando muito, Augias concordou e levou Herácles até a área dos estábulos, onde o herói fingiu estar muito impressionado com as grandes montanhas de esterco e todo tipo de verme e pequenos animais que por ali já criavam seu habitat. Augias deu um tapinha no ombro do herói e foi-se embora, gargalhando.

Herácles desviou a vazão dos rios Alfeu e Peneu para que passassem por dentro do estábulo como um gigantesco tsunami, carregando tudo o que não fosse parede por lá. Em questão de horas o trabalho estava feito e as paredes do estábulo cintilavam!

Augias se negou a honrar o compromisso estabelecido com o Herói e acabou tendo de travar duas guerras contra ele. Motivo pelo qual Herácles acabou mesmo voltando só depois de um ano para junto de Euristeu, mas não sem trazer junto um décimo do rebanho do ex-rei, morto a flechadas por Herácles.


-VII-
O Touro

Euristeu e Hera perceberam que poderiam ter dois grandes novos aliados na batalha contra Herácles: o tempo e o espaço! Estavam enviando o herói para realizar tarefas em terras muito próximas! O próximo trabalho incluiria atravessar o mar e enfrentar um animal fantástico na poderosa ilha de Creta. Além, é claro, de voltar com o animal para comprovar seu feito.

Minos, rei de Creta, havia feito uma promessa a Pósidon, deus dos mares, de que sacrificaria em favor deste último qualquer animal que saísse das águas do mar. Assim conseguiria seus favores na navegação e no seu reino submarino.

Acontece que Pósidon enviou a Minos um touro enorme e majestoso, como nenhum ser humano jamais havia visto. Minos percebeu que, colocando esse touro para procriar com seu rebanho, ele teria um rebanho incrível e poderia negociá-lo a preço de ouro com seus vizinhos comerciais. Então o rei enviou um outro touro para ser sacrificado, na esperança de que Pósidon não notasse a óbvia diferença! Não é preciso dizer que não deu lá muito certo, não é mesmo?

Pósidon, irado, enlouqueceu o touro que havia enviado a Minos. O animal, antes pacífico, começou a soltar chamas pelo nariz e a destruir tudo ao seu redor, parando apenas para dormir. Algumas semanas depois disso Herácles aporta em Creta e se oferece para resolver o problema. Lutando bravamente contra o gigantesco animal, o filho de Zeus consegue prendê-lo pelos chifres e cavalgá-lo sobre o oceano de volta até Micenas. Lá oferece o touro a Euristeu, que se joga dentro do vaso de bronze que ficava ao lado de seu trono e não consegue, sequer, pronunciar palavra, a não ser pensar – apenas pensar, e pensar gaguejando! – que gostaria de oferecer o touro a Hera. A deusa lhe ordena que mande Herácles soltar o animal nas planícies da cidade de Maratona.

Mais tarde esse mesmo touro será um problema para outro herói e amigo de Herácles, Teseu.


-VIII-
As éguas
Como o trabalho anterior fora cumprido quase no limite de tempo estabelecido, Hera e Euristeu, ainda que muito frustrados, sentiram que estavam no caminho certo enviando o herói para lugares longínquos. Então a deusa inspirou Euristeu a lembrar do grande Diomedes, um poderoso filho de Ares, deus da guerra, que habitava os limites do mundo conhecido.

Acontece que Diomedes tinha uma natureza extremamente sádica e havia criado suas famosas éguas alimentando-as com carne humana, o que deixava elas com um ânimo muito parecido com o que tivemos no mal da “vaca louca” alguns anos atrás. A oitava tarefa de Herácles seria ir até Diomedes e domesticar suas éguas, para que fossem pacíficas.

Diomedes ataca Herácles assim que o vê, sem dar sequer tempo para conversa, e, no calor da batalha, o herói joga o filho de Ares, já bem devidamente espancado, na frente das éguas que, após se banquetearem com a carne do seu antigo mestre, magicamente se tornam mansas e tranquilas.


-IX-
O cinturão

Euristeu tinha uma filha, Admeta, uma sacerdotisa de Hera. Com tantos deuses a honrar, a menina tinha que escolher justamente a mesma de seu pai, não é? Maior que a educação é sempre o exemplo. De qualquer forma a princesa Admeta teve uma idéia genial para usar o “office-boy” do pai: usá-lo para conseguir o cinturão da bela e poderosa rainha das amazonas, Hipólita.

Euristeu adorou a ideia. Até então não havia notícias de quem quer que houvesse vencido as amazonas - uma tribo de mulheres guerreiras que usavma os homens apenas para procriação - em combate.

A caminho do seu nono trabalho Herácles já estava ficando famoso e outros heróis se juntaram a ele nessa jornada. Entre eles Teseu, o poderoso herói da cidade de Atenas. Todos chegaram juntos a Temiscyra, lar das amazonas e Herácles se adiantou em conversar com a rainha Hipólita para pedir, educadamente, seu cinturão emprestado. Este cinturão fora dado a Hipólita pelo deus Ares, pela bravura que a rainha demonstrou em combate quando, disputando com outras jovens da cidade, tomou o trono para si.

Hipólita, seja porque simpatizou com Herácles ou porque não queria um confronto com tantos outros guerreiros em seu pais, concedeu em emprestar o cinturão que, obviamente, deveria ser devolvido imediatamente após ser mostrado a Euristeu. Parecia que finalmente o filho de Alcmena conseguiria resolver um trabalho sem sangue, suor e dores.

Mas assim seria muito fácil, não é mesmo? Não satisfeita com a solução diplomática, Hera se metamorfoseou em uma guerreira amazona e começou a ironizar e a achincalhar da bravura dos heróis ali reunidos. Fazia todas as amazonas gargalharem com força e o orgulho ferido dos demais guerreiros foi o suficiente para instaurar a confusão e a guerra.

Hércules, por acidente, assassina Hipólita e, junto com Teseu e os demais, acabam afugentando as amazonas por tempo suficiente para que eles fujam, com o cinturão, claro!
Ainda que Hipólita tenha sido morta o cinturão foi devolvido às suas filhas, logo após adornar a vista da princesa Admeta, que ficou ainda mais frustrada depois de ter tão perto o objeto de seu desejo apenas para vê-lo escapulir por entre seus dedos.

-X-
Os bois

Gerião era neto de Medusa. A górgona, meio serpente meio mulher cujos cabelos de serpente e olhar vermelho sangue tinham o poder de transformar em pedra todos os que o encarassem de frente. A esse tempo Medusa já estava morta pelo bisavô materno de Herácles, Perseu, mas logo depois de morrer Medusa deu à luz a Gerião e ao cavalo alado Pégaso. Pensando no visual da mãe de Gerião dificilmente se espera grandes coisas do filho em matéria de beleza. Pois bem, Gerião era um gigante colossal com três troncos e três cabeças unidas por uma única cintura, de onde saíam seis pernas e seis pés. Parece uma simpatia de sujeito, não?

Pois foi justamente o gado desse “belo rapaz” acima que Euristeu mandou Herácles roubar. Não havia cidade a salvar, monstro a derrotar (talvez só o próprio Gerião, mas este vivia isolado nos confins da terra e não incomodava ninguém) ou qualquer tipo de limpeza que pudesse trazer ainda mais fama e glória ao herói. Era roubo, puro e simples.

Depois de muitos meses andando sozinho – os colegas de expedição haviam feito muita bagunça no encontro com as amazonas e Herácles resolveu viajar desacompanhado – Herácles chega até onde está Gerião. Este possui um gigantesco cão, chamado Ortro, que logo ataca o herói numa tocaia e acaba sendo morto, sob uma chuva de poderosas pancadas que lhe quebraram todos os ossos.

Gerião, assustado pelos barulhos secos das pancadas de Herácles e dos gemidos cada vez mais fracos de seu cão, avança sobre Hércules arremessando pedras. O herói saca suas flechas envenenadas e mata, um a um, os três corpos do gigante.

Carregar o rebanho é que foi a grande tarefa. Ele era grandioso demais e atravessar o mar aberto que separava a ilha de Erítia, onde se escondia o gigante, em direção a Micenas com todos aqueles animais era o verdadeiro desafio. Depois de muito caminhar em direção ao leste o herói ameaça ao próprio deus Hélios, o sol, caso ele não emprestasse sua “taça” (os gregos escreveram “taça”, mas podemos ler “barco”...) para que ele atravessasse o oceano com os bois. No caminho, para lembrar sua façanha por haver ido tão longe, o herói ergue duas enormes colunas que separam a Líbia da Europa. Essas colunas foram chamadas de “Colunas de Herácles”. Ao longo do caminho de volta vários santuários foram sendo erguidos em sua homenagem, à medida em que o herói ia matando monstros, ladrões e criminosos em sua passagem.


-XI-
O Cão

Desesperado com as vitórias consecutivas do herói, agora famoso em toda a Grécia e mesmo fora dela, Euristeu decide mando ao quinto dos infernos! Bem, na verdade não ao quinto, nem exatamente dos infernos, mas sim ao ínfero, ao mundo inferior, morada de Hades, o invisível deus da morte e dos mortos, para buscar Cérbero, o cão de três cabeças, cauda de dragão, pescoço e dorso eriçados de serpentes. Pois é, não é lá uma visão muito animadora.

Na verdade era uma tarefa impossível de ser realizada, mesmo pelo poderoso filho de Zeus, sem alguma ajuda. Nesse trabalho Herácles rezou a Atená que viesse a seu auxílio, oferecendo alguma inspiração que o auxiliasse. Ela lhe chega junto com Hermes, deus da comunicação e condutor dos mortos ao reino de Hades. Enquanto Hermes lhe indica o caminho para o reino de Hades, Atená lhe dá as instruções sobre o que fazer por lá.

Nos territórios de Hades todos os eidolon (espectros) fugiram dele, menos o de Medusa e Meleágro, o herói que havia desposado a poderosa heroína Atalanta.  Herácles promete a Meleágro que, se conseguisse retornar, desposaria sua irmã, a bela Dejanira.

Descendo ainda mais rumo às entranhas da terra Herácles começa a ouvir a voz de Hades, que vem de todos os lados! O herói pediu à voz invisível de seu tio que ele pudesse levar o cão Cérbero para Micenas para mostrá-lo a Euristeu. Hades sorriu e disse-lhe que desde que seu poderoso sobrinho usasse apenas as mãos nuas, poderia levar seu “cãozinho” para “passear”. Contra o poderoso Cérbero, o Herói usou a mesma técnica que aprendera na luta contra o Leão de Neméia: sufocou-o até que ele consentiu em acompanhar o herói.

Vendo Cérbero, com suas três gigantescas cabeças e as cobras que dela saíam, Euristeu, branco como sal, se jogou gritando dentro do seu jarro de bronze.

Herácles ainda teve de escoltar o “fofo” bichano até seu tio de volta. Sua tia/irmã Perséfone, a esposa de Hades, riu muito quando o herói contou-lhe sobre um certo “veneno nauseabundo” que Euristeu teria exalado dentro do jarro, após vislumbrar Cérbero...


-XII-
A maçã

Quando Hera casou-se com Zeus recebeu de “vovó” Gaia, como presente de núpcias, uma árvore que frutificava as maçãs de ouro puro! A esposa de Zeus as achou tão belas que plantou a árvore no seu jardim, no extremo Ocidente. Ali por perto estava Atlas, o titã – divindade primitiva – primo de Zeus e Hera, que fora condenado a sustentar Úrano - o “vovô” céu que fora castrado por seu filho Crono - para que este não caísse sobre a “vovó” Gaia e esmagasse a humanidade e os deuses. As filhas de Atlas ficaram encarregadas de cuidar do Jardim de Hera, junto com um poderoso dragão, imortal, de cem cabeças, que nunca dormia.
Depois de uma exaustiva viagem até os confins do mundo conhecido (dizem que em direção ao que hoje chamaríamos de “Continente Americano”), Herácles encontrou o gigantesco Atlas, no alto da mais alta das montanhas, erguendo e segurando, sobre os potentes ombros, todo o poderoso ‘Céu Estrelado’, como naquele tempo chamava-se “vovô” Úrano.

Conversando com Atlas e fazendo amizade com esse gigante isolado no fim do mundo, Hércules propôs uma troca. Ele ficaria ali segurando o céu enquanto Atlas – que conhecia o dragão de Hera e era pai Hespérides - iria até o Jardim e pegaria um dos pomos para o herói.

Assim foi feito, mas, na volta, Atlas começou a pensar que era bem cômodo não ter de segurar mais o Céu e, ao chegar até Herácles, resolveu que não trocaria mais de lugar com o Herói. Herácles aceitou imediatamente, sem titubear, só pediu que Atlas, rapidamente, segurasse um pouquinho o Céu novamente para que o filho de Zeus pudesse ajeitar a pele do Leão de Neméia que estava coçando. Assim que Atlas segurou o Céu, Herácles agradeceu pelo pomo dourado e despediu-se!

O pomo dourado significa, também, a entrada no reino dos deuses. É a fruta que, se provada por um mortal, torna-o imortal, é o convite, a entrada para o reino do Olimpo.


Várias aventuras ainda foram travadas pelo grande herói, mas, depois de voltar com a maçã de ouro para seu covarde primo Euristeu e oferecê-la, o próprio Herácles, em honra da toda poderosa Hera, eles, finalmente, fizeram as pazes.


Após os 12 trabalhos...
Muitas outras aventuras ocorreram depois e mesmo durante os doze trabalhos até que Héracles morresse e ascendesse como um deus aos céus, para casar-se com Hebe, a deusa da eterna juventude. Mas esse é um assunto para outro encontro, um outro dia...

por Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA
criador dos encontros Mito e Mente I e Mito e Mente II

Um Dicionário Conceitual

O blog "Mito e Mente" foi criado para ser uma espécie de "dicionário ensaístico" que englobe temas concernentes aos domínios da mitologia, literatura clássica, psicologia analítica (junguiana), cultura, pensamento social, arte, símbolos, religiões e filosofia.

Aqui os verbetes não serão apenas definições, mas englobarão também pequenos ensaios críticos, análíticos e, porventura, sintéticos.

O Blog "mito e mente" está incluso no projeto Arquetelos de estudos transdisciplinares de mitologia e religiões comparadas.