Um pequeno ensaio sobre a trajetória e as dimensões simbólicas de Apolo. Parte do grande ensaio sobre o 6° encontro Mito e Mente: De Sangue: Helena e Clitemnestra, Cástor e Pólux, Apolo e Ártemis, mitos da fraternidade.
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O Mito
Leto na Ilha de Delos
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Apolo
O Mito
Leto na Ilha de Delos
Delos, ilha sagrada
do arquipélago das Cíclades, não estava no local onde atualmente se encontra.
Era uma ilha flutuante, vagando incessantemente pelos mares. Um dia uma linda
deusa, com terror e agonia estampados no rosto, pôs os pés naquela ilha. Era a
deusa Leto e trazia no ventre dois filhos de Zeus, Apolo e Ártemis.
Amaldiçoada por
Hera – a legítima esposa de Zeus –, que pediu à deusa Gaia, a Terra, que não
desse abrigo para Leto, afim de que não conseguisse dar à luz aos frutos do
adultério de seu marido, a mãe de Apolo estava impossibilitada de dar à luz em
qualquer terra que se ligasse a Gaia, a deusa Terra, além de ser perseguida por
um monstro denominado Píton, que Hera havia enviado atrás de Leto para não
deixar que permanecesse tempo o suficiente para dar à luz em lugar nenhum. Até
chegar em Delos. A qualidade de ilha flutuante - em algumas tradições criada
especialmente por Possêidon, deus dos mares e tio de Apolo e Ártemis - de ser
um espaço de terra não ligado a Gaia, fazia com que a ilha de Delos, ao
contrário dos territórios da Ática e Trácia e das ilhas de Lesbos e Quios, por
onde a deusa passara anteriormente, pudesse guarnecê-la e escondê-la de Píton
para que desse à luz a seus gêmeos divinos.
O nascimento de Apolo
Diante da promessa
de Leto de que seu filho construiria um magnífico templo em homenagem e
gratidão à ilha que ousou opor-se à vontade de Hera compadecendo-se de uma mãe
que sofria inúmeras dores num eterno e infindável trabalho de parto, duas
pedras monstruosas irromperam do fundo do mar e sobre elas apoiou-se a ilha.
Dessa forma Delos estabilizou-se e acolheu Leto.
Leto com Apolo e Ártemis |
De imediato muitas
deusas vieram auxiliar Leto no trabalho de parto. Menos a deusa Hera, que, ao
tomar conhecimento de que Leto havia encontrado leito onde dar à luz, havia
preso sua filha Eilítia, deusa das contrações do parto, afim de que o parto não
pudesse se realizar. Por nove dias e nove noites fortes dores atormentaram a
deusa. Mesmo Hera, após os longos dias e noites de sofrimento da parturiente,
compadeceu-se das dores de Leto e libertou sua filha Eilítia para auxiliar no
trabalhoso parto.
Quando na décima noite
ela deu à luz a seus dois filhos, a escuridão noturna tornou-se um luminoso
dia. O Sol [deus Hélios] surgiu majestoso no céu, lançando em direção à ilha
seus raios de ouro. Não podia ser diferente uma vez que havia nascido o deus da
luz, Apolo de cabelos dourados e sua irmã Ártemis, a deusa da noite enluarada.
Apolo tinha apenas
quatro dias de vida e já era uma criança robusta, cheia de poderes divinos.
Recebeu de seu pai, Zeus, um arco e uma lira de ouro, assim como sua irmã os
recebera em prata. Todos eram obra do deus Hefesto, o deus do fogo e das
forjas. Seu novo arco de ouro (algumas interpretações o colocam de prata)
incentivou o jovem deus a iniciar uma caçada ao monstro Píton, que atormentara
sua mãe durante a penosa busca por um solo para pari-lo.
Num instante Apolo
voou ao Parnaso, onde o odioso monstro tinha seu covil. Até então ninguém
ousara de indispor contra Píton, que espalhava por toda parte desgraças
extraordinárias. Nos locais onde arrastava seu corpo de serpente a terra e seus
frutos apodreciam e uma imundície se esparramava em tudo o que havia ao redor,
enquanto os homens morriam assim que se deparavam com seu horroroso semblante.
Essa terrível
serpente, ao perceber que alguém ousara se medir consigo, saiu do covil escuro
e seu corpo monstruoso escorregou por entre as rochas, à procura do inimigo.
Tão logo viu que tinha diante de si o filho de Leto, ficou enlouquecido de
cólera e sua boca viscosa espumava ódio. Píton ergueu-se, colossal, bem à
frente de Apolo, como se, com seu volumoso corpo, desejasse ridicularizar a
temeridade do deus menino.
A
questão da busca por esse enfrentamento da fera interior, do ser umbrático,
sombrio, indefinido e pantanoso representa uma katábasis – palavra grega que
significa ‘descida às trevas’ – realizada por Apolo, um momento em que o deus
confronta o desconhecido que já existia e influenciava antes mesmo de seu
nascimento e que agora estava sendo posto em xeque. De certa forma a serpente
Píton significa um lado obscuro da própria Leto, um lado que não queria os
filhos, que queria mantê-los como uma parte de si mesma, eternamente em
trabalho de parto. Para que Apolo pudesse nascer essa Píton, essa ‘mãe
serpente’ teve de ser destruída. Já veremos como o grego coloca esse
‘desconhecido familiar’ em xeque.
Um
pouco mais sobre a origem de Apolo
As opiniões acerca
da origem deste deus divergem bastante: há quem lhe dê por berço a Ásia,
fazendo dele, primitivamente, uma divindade Hitita (os Hititas eram a raça do
povo da cidade de Ílion, ou Tróia); outros o dizem um deus da Lícia; outros
ainda consideram-no uma divindade nórdica. A própria Ilíada apresenta-o como
aliado dos troianos (asiáticos), o que a princípio parece muito estranho, visto
tratar-se do deus grego por excelência. Somente as mais recentes tradições
gregas contam que Apolo, filho de Zeus e de Leto (identificada com a noite e
também denominada ‘Latona’) é irmão gêmeo de Ártemis, pertencendo à segunda
geração dos Olímpicos.
Apolo
mata Píton
Mais rápido que um
raio, Apolo atirou sobre Píton uma única seta. Acertou-o bem no meio da testa.
Um urro terrível encheu os barrancos das montanhas e o horrendo monstro,
fatalmente ferido, ia batendo nas rochas e encostas do Parnaso. Seu corpo
monstruoso se enrolava e desenrolava desesperado de dor e, num dado instante,
arremeteu-se imenso para o alto e, antes que pudesse alcançar Apolo, caiu de
novo, para não mais levantar.
A
imagem de Apolo como um deus da luz que ostenta uma certa frieza em ação, um
certo ‘sangue-frio’ e objetividade, destaca um lado mais sombrio, mais
simbolicamente ‘lunar’ do deus. A princípio Apolo seria uma divindade noturna,
como veremos adiante em ‘O Apolo simbólico’.
Apolo
canta o Peã
Cheio de alegria
por sua grande vitória, Apolo apanhou o amado instrumento, a lira dourada, e
começou a cantar o Peã1 da vitória. O triunfo de uma grande façanha
era agora acompanhado de um outro triunfo – e este não era nada além de uma
canção. Mas pela primeira vez no universo ouviu-se uma canção tão magnífica.
Pelos seus versos e pela melodia fazia desaparecer todo o contraste entre a
luta selvagem e a paz, entre a destruição e a criação, entre a morte e a vida.
Era uma canção que abalava com sua força e beleza. Uma canção que fazia o
universo ficar mudo e os homens, que tanto padeceram por causa de Píton,
arrepiaram-se de emoção, com lágrimas de alegria a lhes encher os olhos.
Quando Apolo
terminou seu peã, um barulho espalhou-se por toda a parte. Era o barulho dos
gritos e urros de júbilo dos homens ao ouvir aquele hino triunfal. É com justiça
que, desde então, Apolo é também incontestavelmente o deus da música.
O
Oráculo de Delfos e o Apolo Pítio
Oráculo de Delfos, hoje em dia |
O deus enterrou
Píton na encosta do monte Parnaso, sobre sua sepultura fundou um templo e um
oráculo. Trata-se do famoso Oráculo de Delfos, que prediz aos homens as
decisões de Zeus, pai de Apolo. A partir de então Apolo ganhou um de seus
epítetos, o de Apolo Pítio, já que, na estrutura simbólica do mito, é comum
deixar que parte desse monstro que se encontra e se derrota no interior viscoso
e umbralino, torne-se parte integrante da personalidade do ser que o haja
derrotado. Essa estrutura pode ser encontrada quando Jasão engana ou mata o
dragão que guardava o velocino de ouro e, ao fugir, leva Medeia, sua futura
esposa, que também era parte integrante do dragão, da mesma forma Hércules
veste-se com a pele do leão de Neméia após matá-lo, ou Perseu usa a cabeça da
medusa para salvar Andrômeda. [Mais detalhes em ‘O Herói de Mil faces’ de
Joseph Campbell]
O Oráculo de Delfos
estava, então, associado à práticas primitivas de invocação dos mortos, já que
era realizado sobre o corpo putrefato da serpente Píton e, pode-se dizer,
valia-se de sua força vital, de sua ligação com sua mãe Gaia, a Terra, para
realizar suas predições. Dessa maneira o Oráculo de Delfos, assim como Apolo,
também tinha sua ‘sombra’[Jung], seu enraizamento nessa dimensão ctônica (do
grego chthón ‘terra, terreno’) do reino dos mortos e do contato com os
ancestrais.
A vidência ou
mântica, na Grécia, é uma prática ligada ao transe e a sacerdotisa do templo de
Apolo, a chamada Pitonisa (sim, também derivado da nossa velha amiga serpente),
além de só poder fazer predições após ter passado por um estado de transe,
também incorporava essa atmosfera perigosa, subterrânea, ligada à morte, às
sementes e às famílias.
Sentada sobre um
banquinho em tripé forrado com peles de serpente e que se equilibrava sobre uma
fenda no chão donde se desprendiam vapores que auxiliavam na entrada no estado
de transe, a Pitonisa passava as mensagens divinas a sacerdotes que a
interpretavam e passavam para o consulente. Quem fosse consultar o Oráculo de
Delfos não podia travar contato com a Pitonisa, somente com os
sacerdotes-intérpretes de Apolo.
Antes de Apolo a
mântica (prática de adivinhação), estava ligada aos mortos e agora assumia a
forma da mântica solar de Apolo, sem perder algumas características anteriores.
O templo de Apolo em Delfos era um local de purificação, de cura de doenças,
contendas e chagas, mas ao mesmo tempo estava intimamente ligado à terra, aos
mortos, ao subterrâneo.
O
bom pastor
Píton era filho da
deusa Gaia, a Terra, que agora considerava Apolo um assassino por o haver
matado. Segundo o antigo direito grego, a Têmis, uma justiça que pode ser
compreendida como o ‘olho por olho’, Gaia tinha todo o direito de matar Apolo,
castigá-lo ou puni-lo como lhe aprouvesse. Mas como o jovem deus também era
predestinado a ser o deus que absolveria os pecados dos assassinos arrependidos
(ver Apolo na Oréstia), era preciso que primeiro ele próprio se purificasse do
crime. Resolveu, então, fazer isso mesmo, ainda que o assassinato que cometera
tivesse sido uma bênção para deuses e homens. Por isso – em algumas
interpretações por iniciativa própria e em outras por ordem de seu pai Zeus –
despojou-se de sua substância divina e rumou para a Tessália, onde se tornou um
humilde pastor a serviço do rei Admeto.
Coisas estranhas
aconteciam quando Apolo saía para levar ao pasto os rebanhos de seu patrão.
Quando o deus pegava a lira e dedilhava suas cordas, os animais selvagens,
encantados, saíam da floresta e saltitavam alegremente ao redor dele, junto com
os carneiros e as vacas. Posteriormente essa habilidade de Apolo foi herdada
por seu filho Pan, o sátiro dos bosques.
Desde a época da
chegada de Apolo a riqueza e a alegria inundaram a corte de Admeto: seus
animais se multiplicaram, seus estoques se encheram de sacas e sacas de
cereais, suas talhas transbordaram de azeite e vinho, de azeitonas e de
manteiga. Carregados também estavam os muros e o teto, de onde pendiam pesadas
sacolas com queijo e outros produtos comestíveis. Tudo do bom e do melhor, pois
aquela cidade era a morada – ainda que inadvertidamente – do deus da
abundância, da fartura e também irônicamente do métron, da moderação, do
comedimento. Como Apolo poderia ser simultaneamente o deus de tais opostos?
Veremos mais adiante.
Admeto, jovem e
belo, orgulhava-se de sua riqueza. Montado em seu cavalo branco, saía para a
planície, admirando seus rebanhos. Seus cavalos, cheios de vigor, beleza e
agilidade, corriam pela vasta campina e seus bois puxavam com força o arado,
que se metia bem fundo dentro da terra fértil, como se Gaia houvesse reatado
amizade ou ao menos perdoado Apolo por sua humildade.
Não era de se
admirar que muitos reis agora quisessem Admeto como seu genro e, para isso, lhe
apresentavam as filhas. Porém seu coração era de Alceste, a belíssima filha de
Pélias, o rei da vizinha Iolco.
A
façanha de Admeto
Pélias, no entanto,
não tinha a intenção de casar sua filha, pois queria que ela cuidasse dele em
sua velhice – o que era a desculpa aberta para encobrir uma paixão platônica e
incestuosa que o rei de Iolco sentia pela própria filha -. Por isso Pélias
declarou que daria a mão de Alceste em casamento somente àquele que conseguisse
atrelar a um carro (os gregos costumavam usar quadrigas e não bigas, como os
romanos) um leão e um javali juntos.
Como alguém poderia
atrelar lado a lado dois animais tão selvagens e diferentes, uma vez que até
então ninguém ousara nem mesmo jungir apenas um deles?
Admeto, no entanto,
inflamado de amor por Alceste, decidiu enfrentar o grande desafio. Sua coragem,
porém, não deixou de comover Apolo. O perigo de que o ousado jovem fosse
despedaçado pelas duas feras era iminente e o deus de cabelos dourados resolveu
ajudá-lo e dar a ele a força necessária para atingir seu intento. Assim o
intrépido Admeto realizou a grande proeza exigida por Pélias e eis que agora
corria em direção a Iolco, sobre o carro puxado por um leão e um javali juntos!
Cheio de admiração pela
inacreditável façanha do rapaz – e um certo receio de que o jovem rei estivesse
sobre a proteção de algum deus –, Pélias deu-lhe a mão de sua filha em
casamento. Alceste sentou-se no mesmo carro e Admeto a levou em triunfo para o
seu palácio, onde realizou um grandioso casamento.
Por nove anos o
deus da luz teve de permanecer nas terras de Admeto. Ao término do nono ano, já
purificado de seu crime, retornou a Delfos. Desde então Apolo é o deus do
grande e nobre sentimento de perdão e protege todo o homem que mostrar um real
arrependimento.
Estar em Delfos,
onde agora erguiam-se o magnífico templo e o oráculo sagrado, muito agradava a
Apolo que, contudo, não se esquecia de Delos, sua ilha natal. Muito menos da
promessa que sua mãe, a deusa Leto, havia feito ali. Por isso, pouco tempo
depois, um templo resplandecente, o templo de Apolo, distinguia-se entre todos
os santuários de Delos.
Escravo
de Dânao
Outras versões
contam que Após matar Píton, Zeus mandara Apolo para o oriente, como escravo do
rei Dânao, para que este dele se servisse como melhor o aprouvesse. Esse rei
pediu a Apolo (e também a Possêidon que se encontrava juntamente com Apolo na
condição de escravo) que construísse as muralhas da cidade de Ílion, também
conhecida como Tróia. É por isso que as muralhas de Tróia não puderam ser
derrubadas. Não foram construídas por mãos humanas e mãos ou armas humanas não
seriam capazes de pô-las abaixo.
Esta teria sido uma
outra forma de purificação para o crime de Apolo, que também pode ser lida como
punição de Zeus contra uma outra revolta dos deuses olímpicos chefiados por
Possêidon e Hera contra Zeus, mas essa é outra história.
No
País dos Hiperbóreos
Também chegava o
tempo em que deixava a Hélade (Grécia) para ir ao ilmunidado, ao fabuloso país
dos Hiperbóreos, onde morava sua mãe. Apolo é um deus com traços pluriculturais
e especialmente orientais e não é de se estranhar que sua mãe pudesse aparecer
algumas vezes como ‘estrangeira’. O fato de ser um deus oriental explica a
atuação de Apolo ao lado dos troianos na Ilíada, de Homero.
Apolo realizava uma
longa, mas belíssima viagem para chegar àquele país encantador. Montado em um
carro alado, puxado por dois grandes e branquíssimos cisnes, viajava por sobre
as nuvens, deixando a Hélade (Grécia) para trás de si. Conforme rumava mais e
mais para o norte, apareciam do alto as primeiras neves que cobrem os picos das
montanhas, como se fossem capuzes muito brancos. Em seguida a neve ia ficando
mais abundante, até que enfim, tudo o que se via abaixo do carro de Apolo
parecia estar coberto com um alvíssimo lençol. No alto, porém, onde voava o
deus de cabelos dourados, o tempo era como de primavera e os cisnes arrastavam
incansavelmente o carro divino.
Enfim, prosseguindo
ainda mais para o norte, a neve começava novamente a diminuir e ao longe, além
do norte, sobressaíam os raios dourados do sol, que passavam pelas nuvens e
iluminavam uma terra fascinante.
Esse era o país dos
Hiperbóreos, do eterno e fresco verão, das muitas cores e da abundância de luz,
das águas cristalinas e dos pássaros paradisíacos que cantavam docemente. A
tradução de ‘Hiperbóreos’ é ‘habitantes além do Bóreas’ (o vento norte), um
povo lendário que na imaginação mítica dos gregos morava na região norte do
mundo, onde o sol nascie e se punha apenas uma vez por ano, e onde esse povo
vivia em paz e era feliz.Segundo constava os Hiperbóreos tinham uma veneração
especial por Apolo.
Estaria aí, talvez,
a lembrança nostálgica dessas paragens longínquas, de onde os primeiros helênicos
passaram à Grécia, no começo do décimo milênio antes da era cristã. Os gregos
consideravam o Hiperbóreo um pouco à maneira da Etiópia e da Atlântida, como
uma espécie de paraíso remoto, um sítio de recreio para bem aventurados, masl
definido geograficamente. Foi de lá que partiu a flecha prodigiosa que formou,
no céu, a constelação de Sagitário.
Mal o deus de
cabelos dourados descia do carro e pisava a relva verde, uma verdadeira festa
acontecia, com os pássaros que voavam entre as árvores e os raios dourados do
sol. Gorjeavam de modo tão belo que pareciam até mesmo as melodias divinas da
lira de Apolo.
Todavia, no mesmo
instante, lá longe na Hélade, nuvens negras haviam coberto o sol. Fazia frio e
chovia, porque o deus da luz tinha partido, porque chegava o escuro inverno –
época em que Core, ou Perséfone, guiada por Hermes, voltava ao Hades para
conviver com seu marido e, sua mãe, Deméter, deusa da terra e das estações do
ano, entrava em profunda depressão -. Os homens, reunidos em torno do fogo,
esperavam pacientemente pelo retorno de Apolo em luz e calor e de Perséfone,
para que Deméter florescesse a terra.
O
Hiperbóreo, então, era uma espécie de super-homem, vivente feliz, sábio, mágico
até um certo ponto, e habitante de um país um tanto Utópico. É interessante
verificar como, à medida que os deuses iam, passo a passo, se distanciando do
mundo dos mortais e à medida em que estes mesmo mortais se distanciavam das
‘leis’ personificadas nestes deuses, o país dos Hiperbóreos começou a florescer
para os homens como um Éden para os deuses, espaço em que eram valorizados ao
máximo, glorificados e exaltados por um povo que poderia ser interpretado pelo
povo helênico (o povo grego) como o povo merecedor dos deuses, o povo temente,
sem disputas, sem cismas, a raça perfeita, o paraíso na terra. É plausível que
essa comparação social feita pelos gregos aos seus ‘irmãos’ hiperbóreos tenha
uma forte influência na continuidade da religião helênica. Como se o fato da
crença nos deuses estar se tornando mais fluídica fosse também pelo fato desses
mesmos deuses encontrarem quem os adore de maneira mais própria.
As
desventuras amorosas de Apolo:
Apolo
e Dafne
Apolo amava muito o
belo da vida. Uma vez, em Delfos, quando experimentava com as setas de ouro sua
habilidade no tiro ao alvo, o jovem Eros, filho alado de Afrodite,
apresentou-se diante dele. Parecia estar à procura de uma oportunidade de
enlear o deus em alguma aventura amorosa.
Naquele momento a
flecha de Apolo havia atingido o talo de uma maçã pendurada no galho de uma
macieira distante. Eros apanhou então o seu arco e o ergueu, alvejando a mesma
maçã antes que esta chegasse ao solo.
- Deixe-me atirar
minhas setas em paz, menino! – Disse Apolo aborrecido. – E te faria muito bem
não ousar medir-se comigo!
- Sei que suas
flechas não erram o alvo – disse o risonho Eros -, mas as minhas também são
infalíveis.
Mais aborrecido
ainda do que Apolo, Eros abriu as asas e voou para o alto do Parnaso. Em
seguida puxou da aljava duas flechas: uma era a flecha que despertava o amor e
a outra era aquela que o recusa. Com a primeira feriu Apolo direto no coração e
com a segunda a ninfa Dafne, filha do rio Peneio, que àquela hora passava,
desapercebida, perto do deus de cabelos dourados.
Apolo, atingido
pela seta do amor, ficou maravilhado com a beleza da ninfa e seu porte
delicado, e avançou para o lugar onde ela estava, com o intuito de lhe falar.
Dafne, porém, atingida pela flecha que recusa o amor, assim que viu Apolo,
afastou-se. Ele, então, se aproximou ainda mais, mas a ninfa, com passos
ligeiros, foi para mais longe. Apolo com saltos rápidos tentou chegar perto da
bela Dafne. E foi isso. Ela saiu correndo. Como louco o deus a perseguia,
gritando-lhe para que parasse, mas ela corria cada vez mais.
- Pare, eu lhe
peço! – implorava o filho de Leto. – Não quero lhe fazer mal!
Mas a ninfa de pés
ligeiros não dava sinais de que iria parar e escapava dele continuamente.
Apolo, por sua vez, também não desanimava e sempre a perseguia e a pedia que
parasse: - Não tenha medo, bela ninfa. Por que foge como se algum animal
selvagem a perseguisse? Não sou mal, sou Apolo, filho de Zeus. Ordeno a você
que pare de correr assustada.
Por
essa passagem percebe-se o ‘fino trato’ que Apolo possuía ao lidar com a
natureza feminina, ao ‘ordenar’ que ela deixasse de se assustar com ele.
Mesmo com toda a
‘sensibilidade’ de Apolo, Dafne continuava a correr. Ora Apolo se aproximava
dela parecendo que iria alcança-la, ora ela se distanciava dele com um súbito
solavanco. Em seguida ele a alcançava de novo, pronto para tocá-la, mas mais
uma vez a ninfa escapava, como uma borboleta assustada.
O deus de cabelos
dourados, no entanto, não parecia estar disposto a parar sua desenfreada
perseguição. A flecha de Eros havia despertado nele uma paixão feroz.
- Por mais que ela
resista, uma hora se cansará e eu a alcançarei. – E, de fato, Dafne começou a
ficar cansada. O deus da luz aproximava-se cada vez mais... e eis que estendia
os braços e chegava perto de tocá-la, de apanhá-la...
- Oh, deuses! E
você, meu pai, por que me deixas cair nas mãos de Apolo? Não o quero para meu
amante! Melhor eu me transformar numa pedra ou numa árvore, do que ser tocada
por alguém que não amo! Ainda que seja ele um deus!
A
Metamorfose de Dafne
E, realmente, naquele
instante, Dafne enrijeceu-se. De seus braços e cabelos despontaram galhos e
folhas, enquanto seu corpo tornou-se o tronco de uma árvore. Assim, a jovem
ninfa se transformou no perfumado loureiro, que todos conhecemos. Apolo, em
alta velocidade, em vez de agarrar a linda moça, agarrou a copa de uma árvore.
Uma grande tristeza
se apossou então do deus da luz. Ficou muito aflito por ter causado o
desaparecimento da ninfa que ele amara tão repentina e fervorosamente. Com
olhos tristes, acariciou as folhas do cheiroso loureiro e, em seguida, cortou
um ramo e o colocou na cabeça. Nunca Apolo esqueceria a bela a indomável ninfa.
E é por isso que muito freqüentemente ele se apresenta com folhas de louro à
cabeça.
Apolo
e Marpessa
Apolo jamais de
casou. Era o mais belo de todos os deuses, levava sua vida como lhe agradava, e
estava satisfeito. No entanto uma vez prometeu casamento, mas nem
nessa ocasião era seguro que permaneceria fiel e, felizmente, o casamento não
aconteceu.
Isso ocorreu com
Marpessa, a filha do rei da Etólia. O pai da moça, o rei Eveno, era muito duro
com ela, mas também era um guerreiro digno e valente. Tomou então a decisão de
que daria sua filha em casamento somente àquele que o vencesse em um duelo de
carros.
Pela mão da formosa
Marpessa e pela sua abundante fortuna, muitos tiveram a coragem de duelar com
Eveno, mas todos foram mortos e ninguém mais ousava se medir com ele. Até que
um dia apresentou-se diante de Marpessa, montado em Pégaso, um cavalo alado, um
lindo e audacioso rapaz. Esse era o invencível herói Idas, filho do rei da
Messênia.
Marpéssia, que
havia escutado muitas histórias sobre as proezas de Idas, ficou aterrorizada ao
vê-lo. Melhor não se casar nunca do que tomar como esposo aquele que matasse
seu pai. Afinal, Eveno não tinha que lutar agora contra um rapaz qualquer, mas
com o célebre herói Idas, que poderia matá-lo.
Marpessa
e Idas
O herói, ao ver o
rosto assustado de Marpessa, percebeu o que ela estava pensando e lhe disse
bondosamente: - Ouça, linda princesa: não vim para assassinar o seu pai. Nem
desejo a sua riqueza, nem o seu trono. Venha, pois, para que fujamos antes do
dia nascer.
Marpessa, ao ouvir
as sensatas palavras do gentil rapaz, sentiu-se envolvida pela felicidade e
prontamente aceitou acompanhar Idas. Ele a fez montar o belo Pégaso, que fora
presente do deus Possêidon, e agora corriam rapidamente para a Messênia.
Assim que o rei
Eveno tomou conhecimento de que sua filha havia fugido com Idas, chamou Apolo
em seu auxílio. O deus de cabelos dourados, que amava Marpessa, aceitou de bom
grado ajudá-lo e, como um raio, os dois partiram para alcançá-los.
Entretanto,
enquanto atravessavam o rio Licormas, Eveno foi arrastado por suas furiosas
águas. Apolo correu e conseguiu
apanhá-lo, mas já era tarde: Eveno tinha morrido. O deus da luz prometeu então
ao rei morto que tomaria Marpessa de Idas e a tornaria sua mulher, que seu neto
seria um famoso herói. Disse-lhe ainda que, mesmo morto, seu nome seria
imortal, porque aquele rio que lhe tomara a vida passaria a se chamar Eveno. E,
tendo dito estas palavras, como um raio partiu novamente ao encalço de Idas
que, antes de conseguir chegar à Messênia, viu-se face a face com Apolo.
A
luta de Apolo e Idas
Idas percebeu de
imediato o que o deus queria e, em vez de recuar, entrou rapidamente na frente
de Marpessa para protegê-la, enquanto seu olhar taciturno mostrava que estava
pronto para tudo. Ele, que não quisera duelar com Eveno, não hesitava agora em
se indispor com um deus! Assim, os dois rivais não demoraram a começar a briga.
A luta entre Idas e
Apolo foi terrível. Impulsionado por seu amor por Marpessa, Idas avançou sobre
Apolo como um leão e Zeus, notando a batalha do alto do Olimpo, quis
apartá-los, o que parecia impossível, até que o rei dos deuses decidiu lançar
um relâmpago no meio deles.
Ao se separarem o
deus dos raios ordenou que lhe pusessem a par do que estava acontecendo:
- Zeus, meu pai –
disse Apolo – quero Marpessa para minha esposa e é um grande desrespeito que um
mortal queira me impedir!
- Pai dos deuses e
dos homens – disse Idas – Marpessa é minha e nada irá me fazer recuar!
Zeus ficou
pensativo por alguns instantes e em seguida, virando-se para Marpessa,
disse-lhe:
- Linda princesa,
você tem todo o direito de escolher sozinha o marido que deseja e eu lhe
prometo que será como você decidir!
Marpessa, tendo
primeiramente agradecido humildemente ao grande Zeus por aquela decisão,
voltou-se para o deus da luz e lhe disse:
Vaso grego mostrando Marpessa entre Apolo e Idas |
- Apolo, você é um
deus. Goza e sempre gozará de eterna juventude, jamais envelhecerá. Eu, porém,
ficarei velha um dia e, então, você me abandonará. Senhor Zeus, há anos vivo
sofrendo, destinada a tomar por esposo, caso venha a me casar, o assassino de
meu pai. Apenas Idas demonstrou ter amor, sabedoria e bravura sem igual entre
todos os meus pretendentes. Eu o amo e quero me tornar sua esposa.
E assim foi, Apolo
se submeteu à vontade de Zeus e, cheio de admiração pelo bom senso de Marpessa
e pela audácia de Idas, desejou-lhes que vivessem felizes e partiu para Delfos.
Cassandra
Apolo também
apaixonou-se por Cassandra, filha de Príamo, o sábio rei de Ílion (Tróia) e ela
lhe prometeu que, se o deus da luz lhe ensinasse a arte da predição, a sua
mântica solar, ela, de posse dessa habilidade, se entregaria a ele.
Apolo então a acolheu
como sua sacerdotisa e a ela foi ensinada a arte da adivinhação, da
interpretação da vontade de Zeus, ou da vontade das Moiras, as deusas que
fiavam o destino dos homens. Ao final de seu período como neófita nas artes de
Apolo, Cassandra se recusou a entregar-se ao mais belo dos deuses e Apolo,
ultrajado por haver sido descartado, cuspiu na boca de Cassandra gerando um
miasma, uma chaga, que impedia qualquer pessoa de acreditar nas predições de
Cassandra, muito embora ela nunca houvesse errado uma única vez sequer.
Um outro efeito do
miasma de Apolo foi uma espécie de ‘histeria’ que fazia com que a profetisa não
conseguisse se conter ao fazer previsões, que as fizesse sempre aos berros,
sacudindo o corpo e arrancando os cabelos, de forma que nunca era acreditada,
como quando profetizou que o Cavalo dos gregos, dado de presente para a cidade
de Ílion (Tróia) após dez anos de guerra, estava repleto de soldados que
incendiariam a cidade à noite.
Calíope
A união de Apolo
com a ninfa Calíope deu nascimento ao músico e herói Orfeu. É significativo que
tanto Pan quanto Orfeu, conhecidos por sua habilidade musical, sejam filhos de
Apolo, o deus da música. Calíope morreu no parto.
Corônis
A bela Coronis,
filha de Flégias, rei dos Lápitas, da Tessália, fugia das investidas de Apolo,
que conseguiu encurralá-la numa caverna e lá a forçou a entregar-se a ele. Ao
saber que Corônis o havia traído, Apolo flecha a princesa na barriga, mas salva
o próprio filho, Asclépio, que se torna o patrono da medicina.
Cirene
Depois de várias
desventuras amorosas frustradas, Apolo resolve se consultar com seu pai Zeus,
que, ao contrário do absurdamente belo filho, não perdia uma conquista amorosa.
Zeus lhe aconselhou que, para que se aproximasse de sua escolhida, Apolo se
metamorfoseasse em um animal e brincasse um pouco com ela para deixá-la mais à
vontade, para que não fugisse dele como era o ‘modus operanti’ das vítimas dos
flertes do deus da luz.
Então Apolo,
enamorado da náiade Cirene, metamorfoseou-se em uma pequena tartaruga (convenhamos:
Zeus se metamorfoseava em cisne, urso, chuvas de prata, tinha um pouco mais de
charme) e Cirene se interessou pela pequena tartaruga. Pegou-a, acariciou,
brincou com sua cabeça e, já e sentindo bem à vontade com o pequeno réptil,
colocou-o em seu colo e o abraçou. Apolo não se contendo mais abriu a boca em
direção ao seio de Cirene e o abocanhou com força tal que jorraram gotas de
sangue enquanto a bela náiade se desvencilhava do pequeno animal traiçoeiro
jogando-o longe.
Ao
som da Lira de Ouro
Apolo não conhecia
a aflição e, de posse de sua lira, espantava toda e qualquer preocupação e
concedia tranqüilidade e alegria. Freqüentemente tocava seu amado instrumento
nos banquetes do Olimpo. Quando o deus de cabelos dourados encostava os dedos
nas cordas mágicas de sua lira de ouro, as nove Musas corriam alegres para o
seu lado e começavam a cantar. Todo o palácio se enchia de doces melodias
divinas. Logo vinha a vontade de dançar, saltavam imediatamente as Musas e as
Graças e com elas a belíssima Afrodite. Quanto mais aumentava a alegria no
Olimpo, mais diminuía a infelicidade na Terra.
Apolo também tinha
filhos. Um deles era Pã de pés de bode, o deus dos bosques. Outro filho seu era
o célebre médico Asclépio. Sua mãe era Corônis, filha do rei da Tessália.
Porém, ela morreu assim que deu à luz. Seu pai então entregou-o nas mãos do
maior preceptor que havia no mundo: o centauro Quíron, que morava no verdejante
Pélion. Foi junto a Quíron que Asclépio aprendeu tantas coisas sobre medicina
e, por fim, superou seu mestre. Além de não haver doença que ele não pudesse
tratar, chegou mesmo a ressuscitar mortos! Entretanto, esse grande bem para a
humanidade não haveria de durar muito...
Asclépio
Hades, o inominável,
irmão de Zeus e senhor do mundo subterrâneo também denominado Hades, foi se
queixar ao seu irmão Zeus da ressurreição dos mortos, pois teve medo de que o
reino do mundo inferior ficasse vazio.
Asclépio, herói da medicina |
O soberano dos
deuses e dos homens, ao ouvir falar da ressurreição dos mortos, pôs-se de pé de
um salto, cheio de ira. Suas sobrancelhas se franziam, seus olhos ganharam um
brilho de cólera e imediatamente nuvens negras encheram o céu. Começou a
relampejar e a trovejar, abalando a terra como se o céu inteiro viesse abaixo.
- Quem é ele para
querer modificar a ordem e as leis que existem no mundo? – Gritou com voz de
trovão. E, com um raio, atingiu Asclépio imediatementee o enviou ao reino do
Hades.
Apolo chorou a
perda do filho, porém os homens choraram ainda mais, pois o adoravam, mais até
que a muitos deuses. Entretanto, mesmo do reino do mundo inferior, Asclépio
tinha forças para ajudar os homens e curar doentes. Toda a Grécia estava cheia
de templos de Asclépio e de ‘asclepeions’, que eram como hospitais ou centros
de cura, construídos no ponto mais saudável de uma região. Neles os sacerdotes
do ‘deus-médico’ cuidavam dos doentes com conselhos, plantas e oraçãoes.
Asclépio ainda
contava em seu trabalho com a ajuda de suas filhas, a deusa Hígia e a deusa
Panacéia3. A primeira cuidava para que os homens vivessem de forma
saudável, para não adoecerem, e a segunda era uma importante farmacêutica.
Tinha elaborado ainda um remédio que levava seu nome. Como a ‘panacéia’ não
havia outro, era um remédio muito raro, mas curava todas as doenças. Assim diziam...
Apolo
e Hélios, quem diabos é o deus-Sol?
O Colosso de Rodes, representando o deus sol Hélios |
Sendo o deus do dia
e da luz, Apolo não era, contudo, o próprio sol. Conduzia apenas o seu carro, o
carro do Sol, e, no desempenho dessa função, tinha o nome de Febo. Vivificava
os seres, fazia germinar as plantas e amadurecer os frutos e as searas,
purificava a atmosfera e destruía os miasmas, mas era ele igualmente o deus da
canícula, das secas; o deus forte e sempre vitorioso, mas também o deus que
mata.
Hélios era o
deus-Sol, o sol em si, o astro, filho dos titãs Hipérion e Téia, irmão de Eos,
deusa da aurora e de Selene, a Lua. Era uma divindade muito atarefada em
percorrer o mundo e pouco se envolvia nos assuntos de deuses e homens. Tem uma
participação importante em Homero, na Odisséia, onde, em sua ilha, tem seus
bois roubados e assados pelos homens de Ulisses.
Apolo
na tragédia grega
O
Apolo da Oréstia
A Oréstia é uma tragédia de Ésquilo, autor
de Prometeu Acorrentado e Os Persas. A Oréstia demonstra de
maneira espetacular o conflito que se forma entre o poder decrescente dos
deuses e da sua justiça arcaica, a Têmis, e o poder ascendente do homem grego
dentro da Polis democrática. O conflito básico em Ésquilo (e também em
Sófocles) se dá entre o Cosmo legitimado dos deuses e o poder profano, a
independência do homem arquitetada no seu arbítrio que lhe conferia também a
responsabilidade por seus atos. Esse homem da Polis grega, responsável por seus
atos, é o ‘homem trágico’ de Vernant em sua obra Mito e Tragédia na Grécia Antiga.
O Apolo da Oréstia
é um deus Kourós (jovem entre 18 e 19
anos, ainda não adulto e já não mais criança, espécie de pós-adolescente),
ligado à iniciação, um guia iniciático de adolescentes em ritos de passagem. O
papel do Oráculo de Delfos na Oréstia está ligado à passagem da Têmis (justiça
dos valores Homéricos, do pensamento mítico e do homem como objeto dos deuses)
para a Dike (justiça alicerçada nos valores da Polis e do cidadão, do homem
como sujeito dotado de livre-arbítrio), a um processo de moralização da cultura
grega para os moldes da Polis, com a responsabilidade individual como um grande
marco, o horror ao crime como uma nova perspectiva e tendo o auto-conhecimento,
o famoso ‘conhece-te a ti mesmo’ (em grego gnoti
sáuton) inscrito no portal do templo de Apolo, como um conhecimento dos
próprios limites, como uma recomendação do métron
(a ‘moderação’).
O funcionamento do ‘conhece-te
a ti mesmo’ de Apolo e a lógica interna da atuação, a princípio incoerente do
deus, é expresso perfeitamente na Oréstia. O primeiro passo é forçar o
indivíduo a ir ao seu limite, a cometer um crime, uma Lyssa, uma hamartia, uma
‘falta trágica’, ir às trevas de seu ser, literalmente descer ao mais baixo
ponto em que aquele ser humano em especial pode chegar. Apolo, na qualidade de
deus de uma tradição patriarcal, pede a Orestes que ‘vingue o assassinato de
seu pai’. Orestes, para ser guiado por esse Apolo Kourós, por esse Apolo guia
dos jovens em seus ritos iniciáticos, estava com seus 15 ou 16 anos. O segundo
passo é descer às trevas interiores, efetuar a Katábasis, que implica em
realizar a hamartia, a descer no mais profundo de sua alma, a conhecer, por
dentro, as trevas interiores do próprio inconsciente, da própria alma, pois
para que Orestes pudesse se vingar do assassinato de seu pai era preciso que
ele assassinasse também quem havia tomado a vida de seu pai, e essa era sua
mãe, Clitemnestra que, após alguns anos de guerra em que seu marido, Agamêmnon,
ficou em terras estrangeiras para resgatar a esposa do irmão, Helena, esposa de
Menelau, uniu-se com Egisto, o primo de seu marido, com o qual tramou e
executou a morte de Agamêmnon, pai de Orestes. E Orestes, por instrução de
Apolo e com a ajuda da irmã Electra, mata a mãe e o tio, chega ao fundo de seu
inconsciente, ao limite trágico de sua existência. O terceiro passo é o resgate
de Orestes, quando pensa que estará livre de qualquer sanção por haver
executado a mãe a mando de Apolo, o espírito da mãe invoca as Eríneas, deusas
ancestrais que salvaguardavam a família e o poder do matriarcado para seguir o
filho invocando-lhe a culpa e a loucura. Orestes foge das Eríneas e vai ao
templo de Apolo em Delfos para que o deus o salve dessa culpa e dessa loucura
que o perseguem sempre de perto. É aí que Apolo aparece, como personagem, na Oréstia,
em sua terceira parte, nas Eumênides:
Falas de Apolo como
guia iniciático, dirigindo-se a Orestes:
- Jamais te
trairei! Serei até o fim teu guardião fiel, quer esteja a teu lado, quer nos
separem distância intermináveis e em tempo algum protegerei teus inimigos.
- Deves, porém,
fugir daqui e ter cuidado. Elas querem continuar a perseguir-te e te procurarão
por todos os lugares, tentando sempre te expulsar de onde estiveres em tuas
longas caminhadas sem destino, além do mar e das cidades que ele cerca. E não
te deixes dominar pelo cansaço enquanto pastoreias tuas desventuras; mas,
quando perceberes que afinal chegaste À nobre cidade de Palas (Palas Atena, a
deusa, a cidade referida é a cidade de Atenas), ajoelha-te e abraça a imagem
antiqüíssima da deusa...
Fala de Apolo como
representante da nova geração patriarcal de deuses e sem respeito pela antiga
geração:
- Já podes ver as
fúrias dominadas; vencidas por pesado sono, ei-las imóveis, estas virgens
malditas, filhas antiqüíssimas de um passado remoto (...) criaturas malditas
por todos os homens e pelos deuses que se reúnem no Olimpo.
Apolo envia Orestes
para Atenas pois não pode efetuar a viagem para Orestes, não pode tirar de
Orestes o mérito por haver ido ao mais fundo de seu ser, ao seu último limite,
e ter retrocedido plenamente consciente de quem é de que escolhas é capaz. Esse
Apolo é plenamente consciente de seu papel como guia e protetor.
Na qualidade de
deus purificador, de deus da luz, em contraposição às sombras, aos fantasmas
representados pelas Eríneas, essas antigas deusas protetoras do matriarcado e
da dimensão pantanosa, nebulosa, terrena e aquosa do princípio feminino, Apolo
sai de seu templo infestado pelas Eríneas com o arco na mão pronto para ser
usado. Após humilhá-las verbalmente nos versos 235 ao 254: - ‘Abandonai agora
mesmo a minha casa! Ordeno-vos! Deixai em paz o santuário onde proclamo
profecias verdadeiras; se não obedecerdes sereis atingidas pelas serpentes
sibilantes de asas brancas (referência às próprias flechas) que, saltando da
corda de meu arco áureo, vos forçarão a vomitar, entre estertores a negra
espuma que deveis a tantos homens e a expelir o sangue que sugaste deles!’,
demonstra como a questão da aparência é importante para Apolo: - ‘E vosso
aspecto é condizente com tal gosto’.
Os sofrimentos de Orestes |
A estratégia
argumentativa de Apolo para com as Eríneas é impressionante em sua capacidade
de reverter os ditos das antigas deusas, mas contém seus hiatos porque coloca
em conflito direto duas lógicas essencialmente contrárias e complementares, o
matriarcado e o patriarcado. Ao mesmo tempo em que cumpre às Eríneas ‘expelir
do lar os matricidas’ [verso 245], Apolo relativiza a questão perguntando-lhes
o que faziam quando a mulher, Clitemnestra, mata o marido, Agamêmnon.
Uma questão que fica
levantada é a de que, ao instruir Orestes a que procure a deusa Atena ao invés
dele mesmo, Apolo, eliminar as Eríneas, Apolo estaria apenas ciente de que
Orestes precisava expiar ainda mais sua culpa e a ‘loucura’ de haver chegado ao
ponto de assassinar a própria mãe, ou se ele mesmo, Apolo, possuía
discernimento suficiente sobre si mesmo para perceber que julgaria Orestes sem
uma visão clara do lado representado pelo fantasma de Clitemnestra e suas
Eríneas, do lado matriarcal. Ou será que Apolo, como deus das predições, sabia
do destino das Eríneas, que haviam de se transformar em Eumênides e mudar sua
natureza, ou da importância da criação do tribunal em Atenas para julgar o
crime de Orestes?
O
Apolo simbólico
Ao surgir durante a
noite, na Ilíada, Febo Apolo, deus do arco de prata (canto1), brilha como a
lua. Será preciso levar em conta a evolução dos espíritos e a interpretação dos
mitos para que se possa reconhecer nele, muito mais tarde, o deus solar, o deus
de luz, e para entender que seu arco e suas flechas sejam comparados ao sol com
seus raios. Originalmente talvez se relacionasse mais à simbólica lunar.
Apresenta-se no canto 1 acima mencionado como um deus vingador de flechas
mortíferas: O senhor arqueiro, o
toxóforo, o argirotoxo (que tem o arco de prata).
De início revela-se
sob o signo da violência e de um orgulho desvairado. Mas, ao reunirem-se
elementos diversos de origem nórdica, asiática e do mar Egeu, esse personagem
divino torna-se cada vez mais complexo, sintetizando em si inúmeras oposições
que consegue dominar, terminando por encarar o ideal de sabedoria que define o
milagre grego. Realiza o equilíbrio e a harmonia dos desejos, não pela
supressão das pulsões humanas, mas por orientá-las no sentido de uma espiritualização
progressiva que se processa graças ao desenvolvimento da consciência.
Deus muito
complexo, terrivelmente banalizado quando o reduzem à figura de um homem jovem,
sábio e belo, ou quando – numa simplificação do pensamento de Nietzsche – o
opõem a Dioniso, como a razão contraposta ao entusiasmo. Pelo contrário, Apolo
é o símbolo da vitória sobre a violência, do autodomínio do entusiasmo, da
aliança entre a paixão e a razão – filho de um deus (Zeus) e neto (por parte de
sua mãe, Leto) de um Titã. Sua sabedoria é fruto de uma conquista, e não uma
herança. Todas as potências da vida nele se conjugam a fim de incitá-lo a não
encontrar seu equilíbrio senão nos pináculos, e para conduzi-lo da entrada da caverna imensa (Ésquilo) aos cimos dos céus (Plutarco). Apolo
simboliza a suprema espiritualização; é um dos mais belos símbolos da ascensão
humana.
Texto por Renato Kress
Criador do projeto Mito e Mente
Texto por Renato Kress
Criador do projeto Mito e Mente
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