segunda-feira, 3 de setembro de 2012

"Aquilo que une", pensamentos sobre o amor

Já escrevi em diversos outros artigos nesse e em outros blogs sobre o fato de que vivemos submersos sob a cultura do medo. O medo causa um "rebaixamento do nível mental", como dizia Jung, e vai limitando o poder da crítica, do pensamento autônomo e da maturação emocional do indivíduo. Indivíduos pouco críticos, emocionalmente imaturos e desacostumados ao pensamento autônomo resguardam-se nos referenciais externos para validar suas concepções da vida e para formular seu caráter e valores. Basicamente quem vive no medo consome mais: produtos, modismos ou idéias. Mas o que essa difusão social do medo pode nos falar sobre nossa relação com o amor?

Amor nos tempos de Fobos
Fobos era uma das divindades que acompanhava Ares - deus da guerra na mitologia grega - e significava "medo", daí a origem da palavra "fobia", que significa estar tomado por Fobos ou sob o domínio de Fobos: estar com medo. No mito de Eros e Psiquê - um mito latino, não grego, embora inspirado em divindades de origem grega - Lúcio Apuleio, um poeta romano, traz as as seguintes palavras saídas da boca de Eros (personificação do amor como desejo de gozo, do amor infantil e puramente hedonista):

“Tola Psique! É assim que retribui meu amor? Depois de haver desobedecido as ordens de minha mãe e te tornado minha esposa, tu me julgavas um monstro e estavas disposta a cortar minha cabeça? Vai! Volta para junto de tuas irmãs (...) O amor não pode conviver com a suspeita!” - Eros
A suspeita é gerada quando a relação de Eros e Psiquê é ainda uma relação juvenil de excitação pura e desigual de uma divindade que mantém cativa uma "esposa" num palácio de ouro e mármore cercada de cuidados e longe das vistas de Afrodite (mãe de Eros), Hermes (pai de Eros nessa versão) e Zeus (personificação da Lei e da Ordem, socialmente, ou da consciência, psicologicamente). Em verdade Psiquê é mantida como um objeto sexual do deus que só a visita à noite, deleita-se no escuro e foge pela manhã sem que a "esposa" o veja. É uma relação de dominação e submissão, ainda que Psiquê aprecie as noites de amor com seu "marido" invisível, o que alguns psicólogos poderiam caracterizar como uma "perversão" submissa da parte dela. Não vou citar longamente a síndrome de estocolmo, mas é inevitável que ela venha à cabeça. A condição de cativa numa terra estranha pode vir a fazer com que a vítima desenvolva algum laço afetivo de identificação com seu captor.

Mas afinal, o que é o amor?
Amor, aquilo que une
A primeira definição da mitologia grega sobre Eros - divindade que representa o amor - está em Hesíodo, em sua Teogonia, para ele "...antes de tudo existiu o Kháos (abismo), depois Gaia (ou Géia, Terra) de flancos amplos, assentada firmemente, oferenda perene a todos os vivos, e Eros (o Amor), o mais belo dentre os deuses imortais, aquele que derreia os membros e que, no peito de todo deus como de todo homem, doma o coração e a vontade prudente". Nessa versão Eros é "aquilo que une", uma espécie de força simultaneamente gravitacional, magnética e sexual, aquele que assegura a continuidade das espécies e a coesão interna do Kosmós (ordem). De certa forma o contrário de amor é desordem e é aí que entra o medo.

Eros existe na Teogonia como força antagônica a Éris (discórdia), aquilo que separa, desagrega, despedaça. Não é de se espantar que numa sociedade contemporânea do "cada um por si", do "jeitinho", do individualismo crônico e esquizofrênico que aparta o sujeito de suas relações com o todo representado pela família, amigos, cultura etc, o amor esteja tão idealizado e distanciado.

O amor como ideal
Idealizamos tudo aquilo com o qual não temos muita intimidade. O distanciamento torna tudo mais simples, homogêneo e límpido. Basta ver expressões típicas nossas como "cultura oriental". A tal "cultura oriental" é mongol, russa, chinesa, indiana ou aborígene? Porque estas e muitas outras estão todas no oriente e são todas diversas, dotadas de riquezas únicas. O distanciamento causa essa falsa impressão de homogeneidade.

Vê o amor, filho?
É pequeno, não pai?
A essa distância sim...
Quando pensamos em amor idealizado, em perfeição absoluta seja de uma relação a dois (Eros), numa relação de afinidade (Philia) ou no amor universal (Ágape), estamos diante de um amor que se encontra longe da nossa visão de mundo contemporânea. Mas diferente da cultura dos Ainos (os aborígenes do Japão), não precisamos atravessar o globo para resolver essa distância e perceber que a romantização que fazemos de um povo ou de uma cultura não é compartilhada por quem vive nessa cultura. O amor é um sentimento, não está nas Bahamas mais do que em Brunei ou no Brasil. Para não endeusarmos o amor basta exercitarmos ele e logo reconheceremos as necessidades e os desafios intrínsecos ao "viver em amor". Eros é mais desafiador que Éris. "Aquilo que une" é muito mais desafiador do que "aquilo que separa".

Existe coisa mais clara, simples e desafiadora que a lei de ouro? "Amai ao próximo como a ti mesmo", "Não faças ao outro o que é injurioso para ti", "Não trates os outros como não gostarias que te tratassem", "Não faça aos outros o que não queres que te façam a ti", "Não coloques em ninguém um fardo que não desejarias para ti, e não desejes para ninguém o que não desejarias para ti mesmo" etc.

O amor como conjunção
Lembro-me de uma parte de uma peça de teatro que escrevi (e nunca publiquei) em que colocava um personagem diabólico (diávolo significa "aquele que separa") para confrontar um personagem inspirado em Gandhi. Na cena em que o primeiro tentava agredir, ofender e irritar o segundo este simplesmente abre os braços e diz "tudo bem, eu te aceito", ação à qual o primeiro responde batendo o pé no chão e gritando que "é impossível brincar com você"!

Amor é também aceitação das diferenças. Inclusive das diferenças de gênio, opinião etc. Numa sociedade movida pelo medo ficamos soterrados em uma lógica de poder e controle que nos impede de respeitar o outro - o que invariavelmente vai nos impedir de ser respeitados e a coisa toda opera por uma grande reação em cadeia. A isso, também, podemos chamar de cultura, o culto ou cultivo diário de uma sensação de apreensão e receio que impede ou ao menos limita gravemente nossa possibilidade de agregar, respeitar e amar.

Enfim, esses são só alguns pensamentos meus. Não há aqui pretensão de certo nem errado e se você pensa diferente, "tudo bem, eu te aceito". :)

Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA
Criador do Projeto Mito e Mente, cujo 7° encontro trata especificamente da temática do amor.

Um comentário:

Um Dicionário Conceitual

O blog "Mito e Mente" foi criado para ser uma espécie de "dicionário ensaístico" que englobe temas concernentes aos domínios da mitologia, literatura clássica, psicologia analítica (junguiana), cultura, pensamento social, arte, símbolos, religiões e filosofia.

Aqui os verbetes não serão apenas definições, mas englobarão também pequenos ensaios críticos, análíticos e, porventura, sintéticos.

O Blog "mito e mente" está incluso no projeto Arquetelos de estudos transdisciplinares de mitologia e religiões comparadas.