quarta-feira, 5 de junho de 2013

Por que zumbis agora?

por Renato Kress

Toda literatura, cinematografia ou expressão artística da ordem da fantasia atende a uma espécie de desejo implícito por expressão de uma intuição ou representação cultural. Penso a que tipo de intuição ou representação a nova leitura do antigo tema dos zumbis pela nossa sociedade contemporânea esteja atendendo. O que vemos nos zumbis? Mais especificamente, por quê dentre tantas criaturas fantásticas do nosso infinito imaginário, estamos nos identificando tanto especificamente com esses mortos-vivos? 

Origem do mito zumbi
A existência dos zumbis (ou "zombis") faz parte das crenças religiosas de vários povos africanos. Reconstituindo a origem linguistica dessa palavra,  Pierre Anglade (1998) destaca a sua presença tanto entre os Fon de Benin quanto em Camarões, no Congo ou em Angola. É na região do Congo que o termo adquire o seu sentido mais forte, já que "zumbi" significa "espírito dos mortos". Na mesma linha Onzambi quer dizer Deus, como é o caso da palavra Nzambi em Angola e na língua kikogo.


Segundo Harold Courlander (1973, p.257): "The word zombie may come from the West african term ombwiri. In the British West Indies the word Jumbie is used loosely to mean ghost or devil"

Cadáveres do Caribe
A representação sobre a palavra Jumbie utilizada, também, no Caribe é preciosa. Ela mostra como, pelas deformações fonéticas, um sentido persiste nos diferentes usos da palavra zumbi e nas suas variantes. Esse sentido ofensivo e misterioso ao mesmo tempo, pode ser encontrado tanto no Caribe quanto no Brasil, onde Zumbi foi, também, o nome de um importante chefe de escravos que se revoltaram no século XVIII e fizeram de Palmares o local de sua resistência. Mas essa é outra história.

Um vivo-morto ou um morto-vivo?
Da palavra congolesa zumbi, que significa "espírito dos mortos", à haitiana zombi, que se traduz em francês por mort-vivant e em inglês por living dead, há, ao mesmo tempo, continuidade e variação de sentido. Enquanto no francês começa-se pela morte, no inglês, começa-se pela vida. Seria então o zumbi mais caracterizado pelos sintomas de um ou de outro? Na língua haitiana a palavra não se impõe sobre este aspecto. O zumbi (zombie) é ao mesmo tempo vivo e morto, sem ênfase em nenhuma das possibilidades.

Do Congo ao Caribe
Então a figura do zumbi vai variar segundo o modo pelo qual é evocada em uma lenda africana, em um boato haitiano, numa notícia de jornal ou num filme ou seriado em Hollywood. Roger Bastide diz que o termo zombis, utilizado para designar os mortos-vivos, significa "aqueles cuja alma foi devorada por um feiticeiro", é o zumbi dos Congos, espírito dos mortos, almas do outro mundo (revenants), que adquiriram no Caribe um sentido ligeiramente diferente.

O zumbi no Vodu haitiano
O vodu haitiano reconhece que todo ser humano é dotado de uma alma composta por dois elementos: o grande anjo-bom e o pequeno anjo-bom. Esses dois elementos, indispensáveis ao bom funcionamento da consciência do sujeito, não são, entretanto, dotados da mesma capacidade de resistir às intervenções exteriores. Enquanto é impossível afetar o grande anjo-bom, o mesmo não acontece com o pequeno anjo-bom. Qualquer um pode tornar-se mestre do pequeno anjo-bom de outra pessoa. Essa condição de posse lhe permite transformar a sua vítima em zumbi.


É interessante pensar a quais consequências chegaríamos se, considerando a vastidão incomensurável do que Carl Gustav Jung considera como tendo os conteúdos do inconsciente (nesse caso abrangendo os inconscientes pessoal e coletivo) e a limitação dos conteúdos da consciência, relêssemos o parágrafo anterior substituindo os termos "grande anjo-bom" por "inconsciente" e "pequeno anjo-bom" por "consciente". Nesse caso teria o poder de "zumbificar" quem tivesse o poder sobre a consciência do outro.

O homem sem vontade
O indivíduo destituído do controle de seu pequeno anjo-bom (domínio de sua consciência) não é mais que uma espécie de autômato que agirá sob as ordens daquele que se tornou seu mestre. Ele simplesmente é incapaz de se opor àquele que lhe ordena fazer qualquer coisa. É um homem sem vontade.



Um ato de vontade é uma irrupção de coragem sobre o oceano primordial das potencialidades do inconsciente. Esse ato de vontade necessita de alguma forma de pressão, de profundidade, de uma carga psíquica, afetiva ou somática que não é encorajada numa sociedade celerada e superficial como a nossa.

Túmulos e asfaltos: Zonas de conforto e ação
Indivíduo tido por morto, que havia sido enterrado e, em seguida, trazido à vida por aquele que o colocara em estado de catalepsia, o zumbi haitiano não retorna do além-túmulo por sua própria vontade, mas, sim obrigado pela ação de seu mestre. Fico pensando até que ponto muitas propostas de treinamento de caráter "motivacional" não se estruturam sob essa perspectiva dualista e rasa: "Não pense, aja!" disfarçadas sob os rótulos simplificadíssimos de "Zona de Ação" e "Zona de Conforto". É algo a se observar, não?


O motivo pelo qual se zumbifica no Haiti é para se servir da força de trabalho de uma pessoa. Desde a dimensão teleológica (finalista) da crença à condição de posse do pequeno anjo-bom de um indivíduo, é necessário acrescentar uma dimensão sociológica que vem da experiência histórica dos haitianos, cujos pais, outrora, foram conduzidos da África para a América para servir de escravos aos europeus. Essa mudança foi vivenciada como uma espécie de grande morte daquela sociedade. Afinal, toda grande mudança operada numa cultura de uma sociedade tradicional (ou arcaica) é experimentada como uma espécie de morte, de transmutação. Cabe ao povo ressignificar as características do renascimento sob novas condições em novas terras.

Morte em vida
Simbolicamente a mudança funcionou para os africanos como o inverso da fuga dos judeus do Egito. Eles não passaram para o território da nova vida, mas para o território da constante morte. Morte de sua vontade, de sua cultura, de sua força, de suas mentes. A humilhação e a opressão desses povos contribuiu para o desenvolvimento do mito dos zumbis que, apesar de já existir na África, ganhou nova ênfase e novas leituras nas Américas.


Início da moda zumbi
A partir de 1915, data da ocupação militar do Haiti pelos Estados Unidos, houve um revezamento entre escritores e cineastas estadunidenses. The Magic Island, livro publicado em 1929 e que serviu de base para a realização e um filme produzido mais tarde, é a mais célebre das narrativas de viagem evidenciando os episódios e interpretando os zumbis. E será esse livro que lançará a moda do zumbi e dará o tom para a sua representação no cinema de Hollywood.

Guerra de imagens
Em uma guerra de imagens, cujo objetivo é atacar ridicularizando o adversário, o personagem do zumbi foi utilizado como uma metonímia do vodu, o qual simbolizaria a barbárie aos olhos do público ocidental. Falar sobre vodu significa falar sobre canibalismo e condenar a característica que marca, ao olhos do público ocidental, os cultos africanos. Ignora-se, nesse caminho, a riqueza íntima do tema mítico dos zumbis.

Tipos de zumbis
Nas narrativas concebidas fora do Haiti o zumbi é uniformemente um personagem lúgubre, maléfico, que semeia o terror por onde passa. No Haiti, ao contrário, há todo o tipo de zumbis.

Zumbis Bossales: É melhor se manter afastado desses tipos. São os tipos mais conhecidos pela cultura ocidental contemporânea. Sem intelecto, capazes apenas de seguir uma ordem simples de seus mestres e de executar tarefas repetitivas e mecânicas. Esse tipo de zumbi foi associado, na fantasia do cinema, à antropofagia (canibalismo) e, principalmente, ao seu peculiar apetite por cérebros. Uma questão de compreensão do mecanismo da antropofagia - que consiste em adquirir as habilidades e conhecimentos daquilo que se come - misturada com uma projeção simbólica do que lhes faltaria (no caso consciência e capacidade cognitiva, cérebros). Ao meu ver esse tipo de zumbificação é muito bem representado na obra "Tempos Modernos".

Zumbis guardiões: Espécie de zumbis dedicada a guardar alguma espécie de tesouro - normalmente abandonado por algum colono de Santo Domingo, antes de sua fuga diante dos revolucionários haitianos. O interessante é que todas as narrativas a respeito desse tema mostram um zumbi com um certo grau de autonomia pois em todos os casos, com o afastamento longo ou permanente do seu antigo mestre, o zumbi perde a paciência de esperar seu retorno e, furioso e desejando pôr um fim ao seu trabalho, entrega o tesouro ao primeiro que chega. Muitos no Haiti esperam ter a prodigiosa chance de encontrar com esse zumbi "pote de ouro no fim do arco-íris".

Zumbis mannmannan: Tipo que as crianças chamam em canções para auxiliá-las, por exemplo, para "capturar a pequena galinha que escapou" (wi wa kenbe ti poulèt ban mwen!). É uma espécie de zumbi puer, de zumbi de criança dado a travessuras, truques e sumiços de objetos importantes.


Indústria Farmacêutica
Observando esses tipos digamos "naturais" da mítica do zumbi no Haiti, imediatamente me vêem à mente os tipos de zumbis mais comuns ao nosso cotidiano cinematográfico ou televisivo. Um dos mais comuns são os zumbis de laboratório. Alguma experiência genética mal sucedida dá origem a seres semi-mortos (ou semi-vivos, à escolha do freguês) cujos atos são desprovidos de consciência moral e cujo raciocínio é ou inexistente ou regredido ao que Freud chamaria de "Id" (inconsciente ou esfera das 'pulsões').


Fracasso da vontade
A vivência da perda de significado, de sentido profundo, causado por uma sociedade celerada onde a informação - que conforma e não forma - nos indica uma necessidade crescente de disposição para suportar uma carga afetiva, física e intelectual de trabalho constante com toda forma de repouso ou ócio direcionada direta ou indiretamente para o consumo não nos dá tempo para digerir os processos emocionais naturais da vida humana. Um efeito semelhante ao causado pelo autor do texto ao escrever essa frase anterior sem quase nenhuma pausa, só que bem pior. É preciso que sejamos autômatos, que executemos nosso trabalho, que estejamos felizes, bonitos, barbeados ou maquiados, elegantes e bem-sucedidos, caso contrário não estaremos sendo fortes (ou "resilientes") o suficiente. Não é preciso falar sobre a perversidade desse sistema de constante derrota da vontade, do raciocínio e da criatividade humana. É preciso perguntar, apenas, se o zumbi está cabisbaixo na poltrona ou pulando à base de comprimidos.

Deixo o carinho de um curta de animação genial da Vancouver Film School sobre o tema:
http://www.youtube.com/watch?v=STN8tzUcYHY

por Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA

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