terça-feira, 17 de agosto de 2010

Religiões da África (Introdução e África Ocidental)



[Postagem em contante re-edição] Classificações

O homem nasceu na África há pelo menos cinco milhões de anos. Hoje o continente abriga numerosos povos que falam mais de 800 línguas (das quais algo em torno de 730 estão classificadas). Seus habitantes foram distingüidos por "raças" e por "áreas culturais", mas esses critérios se mostram insuficientes há mais de meio século. Embora a delimitação das línguas não seja precisa, a classificação lingüística é preferível às outras.

Divisão lingüística do continente africano
Joseph H. Greenberg propôs, em 1966, uma divisão do continente africano em quatro grandes grupos lingüísticos, compostos por várias famílias. O mais importante é o grupo Congo-Kordofan, cuja principal família é a nigério-congolesa. A área lingüística Congo-Kordofan abrange o centro e o sul da África.

Um segundo grupo lingüístico, que compreende as línguas dos nilóticos, do Sudão Ocidental e do Médio Níger, é o grupo nilo-saariano.

Ao norte e a nordeste estende-se a área do grupo afro-asiático, que compreende as línguas semíticas faladas na Ásia Ocidental, o egípcio, o bérbere, as linguas kuchitas e as do Chade, como o hauçá.

O quarto grupo compreende as línguas comumente chamadas do "clique" (devido aos quatro sons característicos da língua dos bosquímanos), às quais Greenberg deu o nome de khoïsan e cujos principais falantes são os bosquímanos e os hotentotes.

Língua e religião
As fronteiras religiosas não acompanham o contorno das fronteiras lingüísticas. Nos países do norte desenrolou-se a longa história do islamismo egípcio e bérbere, este último, principalmente, impregnado de cultos de possessão femininos, que já foram comparados ao antigo culto grego de Dioniso, e de magias africanas. No sincretismo afro-islâmico, o marabu, receptivo ao baraka ou força espiritual, é a personagem central. Antes do islamismo houve o judaísmo das tribos bérberes e o cristianismo africano que, na expansão do movimento puritano donatista combatido por Agostinho (354-430), já prenunciava esse particularismo dos bérberes, que sempre os fez escolher uma forma de religião que não coincidia exatamente com a de seus dominadores.

País a país no oeste
A oeste a situação é diferente. No Senegal convivem os cultos autóctones, a cruz e o crescente. Quanto mais se avança para o sul, tanto mais complexa se torna a escolha. Na Guiné, na Libéria, na Costa do Marfim, em Serra Leoa e em Benim, predomina o sincretismo. Os Mandês são islamizados, mas o mesmo não ocorre com os bambaras, os miniankas e os senufos. Na federação nigeriana predominam os cultos autóctones. A religião dos iorubás é uma das mais importantes da região.

O sincretismo domina a África equatorial e o sul evangelizado pelos portugueses e pelas missões protestantes britânicas e holandesas. A leste, o sincretismo dos bantos é dominado pelo estandarte do profeta. Finalmente, as tribos dos lagos (zandes, nuers, dincas, masais), a despeito da atividade missionária inglesa, continuam praticando as religiões de seus ancestrais.

Problemas de metodologia e referência
A diversidade regional complica as possíveis análises pelos historiadores da religião. B. Holas faz um apanhado geral sem se deter em lugar nenhum em Religions de l'Afrique noire (1964), Benjamin Ray tratou da matéria segundo uma perspectiva fenomenológica, sem atribuir importância nenhuma às divisões geográficas e históricas em African Religions (1976) e Noel Q. King escolheucerto número de religiões representativas e as descreveu individualmente, comparando-as, em African Cosmos (1986). Cada uma dessas opções têm vantagens e desvantagens.

Crenças comuns
Mesmo não sendo universais numerosas religiões autóctones da África partilham duas características em comum: a crença num Ser-Supremo, muitas vezes um deus otiosus (deus ocioso) que se afastou dos assuntos humanos e, por conseguinte, não está ativamente presente no ritual; e a adivinhação em forma dupla (por possessão espírita oracular e por diversos métodos geomântricos), que, por sua vez, parece provir dos árabes.

Religiões da África Ocidental

Os iorubás, sociedades secretas, religião e poder político
A religião dos iorubás, entre as africanas, é a que tem provavelmente o maior número de praticantes (mais de 15 milhões), na Nigéria e nos países limítrofes, como o Benim.

Ainda no início deste século, a coletividade iorubá era denominada por uma confraria secreta que nomeava o mais alto representante do poder público, o rei. Antes de sua nomeaçao o rei nada sabia, pois não era membro dessa confraria, chamada Ogbonis. Ser membro desse clube fechado significa falar uma língua initeligível aos profanos e praticar formas de arte hierática e monumental inacessíveis à maioria dos iorubás.

Ilê, Orum e Aiyê
Envolvido no segredo iniciático, o culto interno dos Ogbonis continua misterioso. No centro: Onila, Grande Deusa Mãe do ilê, que é o "mundo elementar" no estado caótico, antes de organizar-se. O ilê opôe-se, por um lado ao orum, que é o céu enquanto princípio organizado e, por outro, aiyê, o mundo habitado, proveniente da intervenção do orum no ilê.

Incesto primordial iorubá
Enquanto todos conhecem os aspectos assumidos pelos habitantes do orum. os orixás, que são objetos de cultos exotéricos, e o deus otiosus Olorum (Olodum), que não é cultuado, a presença do ilê na vida dos iorubás é carregada do inquietante mistério da ambivalência feminina. A deusa Iemanjá é fecundada pelo próprio filho Orungã, e os produtos dessa relação incestuosa constituem grande número de deuses e espíritos. Iemanjá é a mestra de todas as feiticeiras Iorubás, que a tomaram por modelo dado o esenrolar excepcional e atormentado de sua vida. Outra situação associada à feiticeira é a esterilidade, representada pela deusa Olokun, mulher de Odudua.

Uma terceira situação que leva à feitiçaria é a da Vênus iorubá, a deusa Oshun, protagonista de uma série de divórcios e escândalos. é a inventora das artes mágicas, e as feiticeiras consideram-na uma das suas.

A arte divinatória Iorubá
O mundo organizado mantém-se afastado do ilê. O criador é Obatalá, deus que forma o embrião do ventre materno. Com ele, o Orum (Ogum), enviou para o Aiyê o deus dos oráculos Orunmila, cujos instrumentos de adivinhação estão presentes nas casas tradicionais iorubás. A adivinhação Ifá é uma forma de geomancia proveniente dos árabes. Comporta dezesseis figuras básicas, cujas combinações determinam o prognóstico. O adivinho não interpreta a sentença; limita-se a recitar versos pertencentes ao repertório tradicional, mais ou menos como os comentários do I-Ching, o livro de adivinhação chinês. Quanto mais versos o adivinho conhecer, tanto mais respeitado será por sua clientela.

Exu
Outro orixá importante é o Exu
Trapaceiro, pequeno e itifálico. Por um lado provoca riso e, por outro, engana. É preciso saber torná-lo propício mediante sacrifícios de animais e oferendas de vinho de palmeira.

Ogum
O padroeiro dos ferreiros, cujo estatuto é muito particular em toda a África e implica isolamento e suspeita mas também atribuição de poderes mágicos ambivalentes, é o deus guerreiro Ogum.

Os gêmeos entre os Iorubás
Essa mesma ambivalência encontra-se na idéia que os Iorubás têm dos gêmeos. A anomalia do nascimento de gêmeos representa um dilema para os povos africanos: é preciso ou neutralizá-la enquanto ruptura do equilíbrio do mundo (caso em que um dos gêmeos ou os dois precisam ser suprimidos), ou prestar-lhe reverência especial. Os iorubás dizem que, em passado distante, preferiam a primeira solução, mas que um oráculo ordenou-lhes que adotassem a segunda. Entre eles os gêmeos são alvo de atenção especial.

Deuses secundários
Se Obatalá modela o corpo, Olodumaré insufla-lhe o espírito (emi). Na morte, as componentes do ser humano retornam para os orixás que as retribuem através dos recém-nascidos. Há, porém, componentes imortais, pois os espíritos podem voltar para a terra e tomar posse de algum dançarino Egungum. Este passa a mensagem dos mortos para os vivos.

Religião dos Akans
Os Akans são um povo de língua twi, do mesmo tronco kwa dos iorubás. Formam uma dúzia de reinos independentes em Gana e na Costa do Marfim, sendo o mais importante o dos Achantis. Sua organização por clãs, em oito unidades matrilineares, não coincide com a organização política. Como os iorubás, os achantis têm seu deus otiosus celestial, Nyame, que fugiu do mundo dos humanos por causa do barulho insuportável que as mulheres fazem quando batem inhames para fazer pirão. Em cada casa achanti, Nyame tem um pequeno altar acomodado numa árvore. Por ser deus criador, é invocado constantemente ao lado da deusa da terra, Asase Yaa.

Os achantis veneram as divindades pessoais abosuns
e as impessoais asumans e invocam os ancestrais (asamans) usando escabelos escurecidos com sangue e outros materiais. A casa do rei tem seus escabelos negros que recebem oferendas periódicas. A instituição monárquica dos achantis comporta um rei (Asantehene) e uma rainha (Ohennemmaa), que não é sua esposa nem sua mãe, mas uma representante do grupo matrilinear que se identifica com o grupo político.

A festa religiosa principal em todos os reinos akans é o Apo, período de reflexão sobre os ancestrais e de cerimônias purificadoras e propiciatórias.


Visão do mundo dos Bambaras e dos Dogons do Mali

Populações diferentes com um mesmo substrato religioso.
Germaine Dieterlen escrevia, em 1951, em seu Essai sur la religion bambara: "Pelo menos nove populações de importância desigual (dogons, bambaras, ferreiros, kurumbas, bozos, mandingas, samogos, mossis e kules) vivem no mesmo substrato metafísico, se não religioso. Têm em comum o tema da criação por um verbo inicialmente imóvel, cuja vibração vai determinando aos poucos a essência e, depois, a existência das coisas; o mesmo ocorre com o movimento em espiral cônica do universo, que está em extensão constante. Importante salientar a similaridade entre essa concepção da criação e da metafísica do universo com as descobertas da astrofísica e da física quântica atuais.

Têm a mesma concepção da pessoa e da geminidade primordial, expressão da unidade perfeita. Uns e outros admitem a intervenção de uma hipóstase da divindade que, às vezes, assume o aspecto de um redentor e senhor do mundo, cuja forma é idêntica em todos os lugares. Todos crêem na necessidade da harmonia universal, como na da harmonia interna dos seres, estando as duas interligadas. Um dos corolários dessa noção é o sutil mecanismo da desordem que chamamos impureza, por falta de termo melhor, e que é acompanhado pelo das práticas catárticas muito desenvolvidas."

Mitologia Aritmédica
Na cosmogonia dos dogons, os arquétipos (tipos primordiais) do espaço e do tempo estão inseridos, sob a forma de números, no seio do deus celeste Amma. É o Trapaceiro Raposa Branca, Yurugu, que institui o espaço e o tempo reais. Em outra versão o universo e o homem são criados a partir de uma vibração primordial que procede, em forma helicoidal, de um centro cujo impulso é dado por sete segmentos de diferentes comprimentos. Essa forma de compreensão do espaço-tempo como trapaça primordial coincide com a lógica do Samsara, a roda das encarnações indiana.

Homem e Cosmos
Cosmificação do homem e antropomorfização do cosmos são as duas operações que definem a visão dogon do mundo. Assim, o dogon "procura seu reflexo em todos os espelhos de um universo antropomórfico, onde cada haste de capim, cada mosquito é portador de uma 'palavra' (Ethnologie et language, Calame-Griaule).

Palavra e silêncio
É idêntica a importância das palavras entre os bambaras: "O verbo estabelece (...) uma aproximação entre o homem e seu deus, ao mesmo tempo em que uma ligação entre o mundo objetivo concreto e o mundo subjetivo de representação." (Dialetique du verbe chez le Bambaras). A palavra pronunciada é como uma criança que vem ao mundo. Há várias operações cuja finalidade é facilitar o parto da palavra pela boca: o cachimbo e o fumo, o uso do caroço de cola, limar e esfregar os dentes, tatuar a boca. No fundo, parir a palavra não é uma operação sem risco, pois ela rompe a perfeição do silêncio. O silêncio, segredo que se cala, tem valor iniciático que caracteriza a condição original do mundo.

O nascimento da língua
No princípio não havia necessidade de linguagem, pois tudo o que existia estava integrado numa 'palavra inaudível', um sussurro contínuo que o criador rude, fálico e arborícola Bemba confiou ao criador celeste, requintado e aquático, Faro. Muso Koroni, mulher de Bemba, que engendrara as plantas e os animais, sentiu ciúme do marido, que copulava com todas as mulheres criadas por Faro. Por isso traiu-o, e Bemba perseguiu-a e agarrou-a pela garganta, estrangulando-a. Desse tratamento violento da esposa, infiel ao marido infiel, nasceram as rupturas no fluxo sonoro contínuo, absolutamente necessárias para engendrar palavras, uma língua.

De como o "desequilíbrio espiritual" dá início às sociedades
Como os dogons, os bambaras acreditam na decadência da humanidade, sendo o surgimento da linguagem apenas um de seus sinais. no plano individual, a decadência caracteríza-se pelo wanzo, a feminilidade desregrada, feiticeira, do ser humano que, no estado perfeito é andrógino. O sustentáculo visível do wanzo é o prepúcio. A circuncisão retira do andrógino seu componente feminino. Despojado da feminilidade, o homem sai à procura de uma esposa e é assim que aparece a comunidade. A circuncisão física ocorre na primeira iniciação infantil, o n'domo, enquanto a última das seis dyows (iniciações) sucessivas, o kore, tem por objetivo restituir ao homem a feminilidade espiritual, tornando-o novamente andrógino, portanto perfeito. O n'domo marca a entrada do indivíduo na existência social; o kore marca sua saída, para reunir-se à plenitude e à espontaneidade divinas. Os dogons e os bambaras contruíram, com base em seus mitos e rituais, uma arquitetura do conhecimento sutil e complexa.

_____
Texto de Renato Kress
Adaptado de "Dicionário das Religiões" de Mircea Eliade. Esse texto vai sofrer várias alterações de estudos complementares até tornar-se uma referência diversa. O texto base de Eliade foi escolhido por ser o mais completo e proporcionar mais abrangência ao tema.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Um Dicionário Conceitual

O blog "Mito e Mente" foi criado para ser uma espécie de "dicionário ensaístico" que englobe temas concernentes aos domínios da mitologia, literatura clássica, psicologia analítica (junguiana), cultura, pensamento social, arte, símbolos, religiões e filosofia.

Aqui os verbetes não serão apenas definições, mas englobarão também pequenos ensaios críticos, análíticos e, porventura, sintéticos.

O Blog "mito e mente" está incluso no projeto Arquetelos de estudos transdisciplinares de mitologia e religiões comparadas.