segunda-feira, 23 de abril de 2012

Ensaio sobre o Mito

[Postagem em constante re-edição]


"O mito é o nada que é tudo" - Fernando Pessoa

A narrativa
O mito é a mais antiga forma de conhecimento, de consciência existencial e, ao mesmo tempo, de representação religiosa sobre a origem do mundo, sobre os fenômenos naturais e a vida humana. Deriva do grego Mythos, palavra, narração ou mesmo discurso, e dos verbos mytheyo (contar, narrar) e mytheo (anunciar, conversar). Sua função, portanto, é a de descrever, lembrar e interpretar todas as origens, seja ela a do cosmo (cosmogonia), dos deuses (teogonia), das forças e fenômenos naturais (vento, chuva, relâmpago, acidente geográfico), seja a das causas primordiais que impuseram ao homem as suas condições de vida e seus comportamentos. O mito é, em essência, a narrativa que traz sentido à nossa realidade, a trama de significados sem os quais nossa vida não tem sentido. 

O mito e suas teorias
O mito pode ser compreendido como uma narrativa sacra envolvendo seres sobrenaturais e incorporando à consciência coletiva, o mito é entretecido de crenças populares a respeito da humanidade e do mundo social, bem como da natureza e significado do universo. Ao longo do século XIX, várias escolas de pensamento se debruçaram sobre a interpretação dos mitos. As teorias do mito que desenvolveram podem ser divididas em psicológicas, funcionalistas, estruturalistas e políticas.


Caos e Cosmos
O mito é a primeira manifestação de um sentido para o mundo.  Quando contamos histórias a nossos filhos pra ilustrar as leis, costumes e funcionamento do mundo estamos contando um mito que é real à medida em que agimos de acordo com ele. É como uma grande lente interpretativa da realidade, mas para isso ele deve abarcar as histórias da origem, deve responder a questões sobre quem somos, de onde viemos e para onde vamos. O mito dota o ser humano de um senso de propósito.

Os mitos tanto podem relatar as genealogias (as gerações sucessivas desde o primeiro ser ou causa), como explicar os atributos dos seres e das coisas (poderes e capacidades). Outra característica comum a diversas mitologias, em seus aspectos cosmogônicos (explicação sobre a geração do cosmos), é a existência primeva do caos, ou seja, de um estado amorfo ou indiferenciado de elementos - as trevas, o oceano primordial, o espaço infinito, o Céu e a Terra ainda fundidos, o Ovo Cósmico, o Todo são imagens comuns a muitas mitologias ao redor do mundo. Em todas as mitologias do planeta é a partir do caos que se dá a criação do cosmo, de um conjunto de partes diferenciadas ou mesmo opostas (terra-céu, líquido-seco, noite-dia), mas ordenadas e mutuamente dependentes.

Antropologia do século XIX e abordagens psicológicas
Os antropólogos do século XIX interessados na evolução e difusão de culturas buscaram descobrir a origem dos mitos, interpretando-os como pensamento não-científico e registros incompletos de eventos históricos. As abordagens psicanalíticas desenvolvidas por Sigmund Freud, em vez disso, tenderam a buscar no mito temas de conflito psíquico universal (repressão, tabu do incesto, inveja dos irmãos, complexo de Édipo), ou imagens arquetípicas brotando do 'inconsciente coletivo' (Jung, 1964).

O que se deve salientar é que o mito, enquanto narrativa, se presta a várias possíveis interpretações. Sendo o que estudiosos de história das religiões e psicologia chamam de "símbolo vivo". Algo que possui um significado e um espectro interpretativo, mas que não pode ser completamente fechado em uma definição, estando sempre aberto a novas leituras. O mito muda, como a realidade muda e a realidade muda à medida que o mito que a explica muda também.

Crítica funcionalista
Bronislaw Malinowski em Trobriand
A tradição antropológica funcionalista, mais bem representada por Bronislaw Malinowski, criticou essas teorias por abstraírem os mitos de seu contexto social. A partir de estudos empíricos dos ilhéus de Trobriand, Malinowski afirmou que "o mito preenche, na cultura primitiva, uma função indispensável": é produto de uma fé viva que serve para codificar e reforçar normas grupais, salvaguardar as regras e a moralidade e promover a coesão social. O mito é parte do ethos (síntese da cultura de um povo, espécie de "cola social" que mantém unida uma parcela da humanidade) de um povo. Como nossos indígenas buscavam sentido para suas vidas e ações em 'Tupã', muitos de nossos contemporâneos buscam sentido para a narrativa de suas existências no 'Mercado Financeiro', cuja base é crédito. Nunca é demais salientar que a origem da palavra 'crédito' é a palavra latina credere, que significa "acreditar".

As leituras de Lévi-Strauss
Claude Lévi-Strauss
As abordagens contemporâneas, incluindo as de Leach e Barthes, têm sido fortemente influenciadas pelo estruturalismo e, em particular, pelos estudos do antropólogo Claude Lévi-Strauss. Usando teorias desenvolvidas na psicanálise e na lingüística, Lévi-Strauss interpretou os mitos, não como guias de ação fornecendo explicações ou legitimação para disposições sociais existentes, mas como sistemas de signos - uma linguagem cujo sentido é codificado e se encontra sob superfície narrativa. Foi um resgate do mito como narrativa.

O mito na academia antropológica
Os mitos são um expediente cognitivo usado para reflexão e resolução das contradições e princípios subjacentes em todas as sociedades humanas, cada mito sendo uma variação sobre temas universais, recombinando incessantemente os elementos simbólicos constituídos por grupos de oposições binárias (mãe/pai, natureza/cultura, fêmea/macho, cru/cozido), que supostamente refletem as categorias fundamentais da mente humana.

Nossa apreensão da realidade se daria pela contraposição de pares complementares de opostos (dia/noite, yin/yang) e o mito seria uma forma mais lúdica e natural de aprendizagem sobre o mundo.

A compreensão platônica do mito
Platão e Aristóteles, ao centro da Academia
Para Platão a mitologia era uma maneira de traduzir aquilo que pertence à opinião e não à certeza filosófica. Sejam quais forem os sistemas de interpretação, eles ajudam a perceber a dimensão da realidade humana e trazem à tona a função simbolizadora da imaginação. Ela não pretende transmitir "a" (tão procurada) verdade filosófica suprema, mas expressar as diversas possíveis verdades de certas percepções. Toda a compreensão platônica do mito, pelo próprio peso que a figura de Platão adquire através dos tempos, acaba infundindo uma visão pré-conceituosa (porque anterior ao bom conhecimento do próprio 'conceito' do mito e de suas implicações) que engendrou o desafio em que a ciência e a filosofia ocidentais, a maior parte das vezes, às raras exceções de um Jung, Capra, Eliade ou Campbell, invariavelmente empacam.

Muitos de nossos acadêmicos e filósofos até hoje compreendem o mito como uma espécie de "pré-razão", de um pensamento ainda não plenamente desenvolvido. Para eles o pensamento desenvolvido não permitiria a possibilidade de interpretação, mas apenas a concordância inevitável com uma única verdade absoluta, óbvia, clara e inegável. Essa pretensão ao alcance da verdade única é a raiz de todo o pensamento fascista e ditatorial, já que é completamente intolerante com quaisquer pensamentos que venham a se contrapor ou divergir a ele. Admitir o mito como passível de diversas interpretações também é admitir que possamos ter diferentes verdades pessoais, familiares, sociais, religiosas ou culturais. Não é só um ato de humanidade como um ato de humildade no mais alto grau.

O desafio da limitação acadêmica
As técnicas estruturalistas de Lévi-Strauss têm proporcionado percepções úteis dos motivos subjacentes aos mitos, mas os críticos alegam que essa abordagem é reducionista, uma espécie de "malabarismo verbal com uma fórmula generalizada e que não pode mostrar a verdade." (Leach, 1970). A pretensão do encontro de uma "verdade" unívoca manifesta o vício racionalista da ciência ocidental e impede seu encontro com as infinitas interpretações possíveis dos mitos. A pretensão dogmática de encontro de uma única verdade absoluta e inequívoca, permanecendo, dará ao mito sempre sua atmosfera nebulosa e polissêmica. 

Águas primordiais
"O tema das águas primordiais, imaginadas como uma totalidade ao mesmo tempo cósmica e divina, é bastante frequente nas cosmogonias arcaicas. Também nesse caso, a massa aquática é identificada à 'mãe original' que gerou, por partenogênese, o primeiro casal, o Céu e a Terra, encarnando os princípios masculino e feminino" - Mircea Eliade, História das Crenças e das Idéias Religiosas.

Boa parte das tradições míticas da humanidade relatam a criação do cosmos (ordem) como surgindo através das águas ou mesmo de ondas. Mesmo a tradição Bíblica sustenta que "O Espírito de Deus movia-se sobre as águas". A ideia de uma espécie de caos aquoso é muitíssimo comum entre as tradições míticas e há interpretações antropológicas, religiosas, filosóficas, mitológicas, simbólicas e psíquicas para esse fato.


Pensamento simbólico
Embora seja um tipo de pensamento e de consciência pré-sintética (ou seja, pré-filosófica ou pré-científica), o mito oferece explicações para a realidade aparente e para a vida humana, como também para aquilo que, aos olhos dos mais antigos homens, aparecia como mistério, no sentido de algo velado, simbólico, só acessível a iniciados.

Estruturação do discurso sagrado
Por isso, habitualmente, o mito possui um valor sagrado que merece ser conservado e transmitido por pessoas dotadas ou escolhidas pelo deuses ou sacerdotes, poedas-rapsodos ou xamãs. Seus rituais de renovação ou de comemoração procuram manter vivas as forças criadoras e mantenedoras da vida, evitando a decadência e o retorno à indiferenciação primitiva (por exemplo, nas festas de Ano Novo). Como afirmou Van der Leeuw em O homem primitivo e a religião: "o rito é um mito em ação".

À medida em que estamos agindo de forma a marcar nossa trajetória nesse mundo, tendo vidas preenchidas de significado e essência, estamos ritualizando nossa vida, vivendo nosso mito pessoal. Viver fora do mito é viver uma vida sem um nexo final, sem uma congruência, onde o conteúdo de ontem e o de amanhã não estão interligados numa narrativa coesa. Viver o mito é viver a vida em plenitude.

A linguagem do mito
Friedrich Schelling
E conquanto se costume dizer que o mito constitui uma linguagem fortemente alegórica ou metafórica, o que também o distingue da filosofia e da lógica, há ensaístas que assumem uma interpretação contrária.

"As representações mitológicas não foram inventadas, nem livremente aceitas. Produtos de um processo independente do pensamento e da vontade, elas eram, para a consciência que lhes fazia registro, de uma realidade incontestável e irrefutável. Povos e indivíduos não passam de instrumentos deste processo que ultrapassa os seus respectivos horizontes e a cujo serviço eles se colocam sem nem sequer o compreenderem" - Schelling, Introdução à Filosofia da Mitologia.

Para muitos autores, como para Friedrich Schelling, o mito é, também, uma entidade independente, superior, em efeito, às vontades humanas e aos caprichos das conjunturas em que atuem. Para ele o mito tem um percurso próprio e, talvez, essa teoria possa ser integrada às teorias de Carl Gustav Jung sobre a equilibração da dinâmica psíquica tanto dos sujeitos como das sociedades.

O mito na Ciência Política
Em ciência política, o significado da palavra tem sido às vezes ampliado para a filosofia política, a ideologia e a religião. O autor mais famoso nessa tradição foi Georges Sorel, para quem os mitos (incluindo a "Greve Geral" e a "Revolução Proletária") eram imagens capazes de invocar instintivamente todos os sentimentos que permitem a um povo, partido ou classe colocar em jogo suas energias para a ação política. Para Sorel (1906), todos os grandes movimentos sociais desenvolvem-se através da busca de um mito que fornece o idealismo necessário para reunir e unir as pessoas atrás de uma causa.

O mito, na sua qualidade simbólica, contém uma forte carga do que Jung denomina como "libido" (energia psíquica) pois, por estar aberto à interpretação e nunca completamente definido, não dá "descanso" para as atividades psíquicas que exercem continuamente sua função de delimitar um sentido, de sintetizar uma ideia ou de rotular um evento. A carga de energia psíquica de um mito é muito maior do que a carga de energia de um fato.

O mito político
Eva Peron, um mito político argentino
A idéia do mito como elemento essencial urdido no tecido de uma ideologia geral teve eco na concepção mussoliniana do fascismo como uma fé viva. O mito político é um recurso mobilizador, uma celebração dos "impulsos irracionais", cujo apelo aos fabricantes de mitos reside mais na visão lúcida e instigante de redenção e salvação do que em argumentos baseados em princípios abstratos. A dificuldade de compreender a lógica dual do símbolo e a necessidade cultural da sociedade ocidental de idealizar a razão faz com que a filosofia política ocidental se assombre com determinados fenômenos sociais como fascismos e identifique-os como "irracionais".

A razão também pode ser utilitária, interesseira e intolerante, como nos fascismos e nazismos cujo processo de racionalização, exclusão, escravidão e usofruto da mão de obra e bens dos judeus foram extremamente racionalizados e racionalmente bem delimitados. O que não deixou de constituir um genocídio vergonhoso praticado em nome da toda poderosa "verdade absoluta", naturalmente intolerante a todas as demais verdades.

Evemero e sua "história mítica"
Evêmero (séc. IV a.C.), vira nos mitos uma representação da vida passada dos povos, sua história, com seus heróis e suas façanhas, sendo de alguma maneira reapresentada simbolicamente ao nível dos deuses e de suas aventuras: o mito seria uma dramaturgia da vida social ou da história poetizada. Para Evêmero, por exemplo, Heracles (Hércules entre os romanos) teria sido um chefe guerreiro que enfrentou outro chefe que se apresentava, ou se identificava como o "Leão da (região de) Neméia" ou como a "Hidra da (região de) Lerna". É uma interpretação que culmina, posteriormente, no desenvolvimento do trabalho arqueológico interessantíssimo de um Erik von Daniken, embora perca, no processo, toda sua riqueza simbólica e psíquica.

Fenômeno liminar e "tempo forte"
Mircea Eliade
Crucial para a maior parte das teorias é a idéia de que os mitos não estão relacionados com o espaço e o tempo comuns, mas se encontram fora deles. "Era uma vez", a "Idade de Ouro", a "Aurora dos Tempos" ou o "fim da história", tudo isso implica eventos passados ou futuros que não estão diacronicamente ligados ao presente. Nesse aspecto, os mitos tem sido interpretados como "fenômenos liminares", contados em épocas ou lugares que ficam em um grau intermediário entre os estados normais do ser. Assim, segundo o mitólogo e historiador das religiões romeno Mircea Eliade, os que participam do mito são transportados temporariamente do mundo cotidiano para um plano onde o tempo é considerado "sacro, concentrado" e de "intensidade ampliada".

O xamanismo, estudado por Mircea Eliade, utiliza o mito como uma forma de cura psíquica. Quando o Xamã relembra "o tempo dos tempos" ou "o tempo dos primórdios", onde tudo foi criado, desde o primeiro grão de mostarda até o ser humano e então o próprio paciente, o xamã está reintegrando à mente do seu paciente a narrativa da própria vida dele. Todo o sentido de trajetória de uma vida que invariavelmente passa. Isso tem um caráter catártico e terapêutico fortíssimo, porque interfere na constituição (ou na reconstrução) do caráter do sujeito e, muitas vezes, cura desequilíbrios de ordem psíquica ou mesmo reintroduz um criminoso dentro dos esquemas de lei e ordem que se estabeleceram naquela comunidade.

Estrutura social, estrutura da psique
A civilização clássica e a cultura ocidental devem muito à mitologia grega. Em primeiro lugar, pela enorme capacidade que ela demonstrou de representar funções, sentimentos ou paixões psicológicas, tanto quanto atitudes mentais ou espirituais. Entre tantas outras, a Memória (Mnemosyne), a Sabedoria e a Prudência (Métis), o Amor (Eros), o Medo (Phobos), o Furor (Lyssa), o Destino Implacável (Moiras). Em segundo, por ter servido de fonte e seminário à poesia, ao teatro e às artes figurativas, desde então.

Somos frutos de uma miscigenação de culturas míticas. A cultura grega influenciou a cultura latina que trocou com as culturas africanas e nórdicas e todos esses mapas interpretativos da realidade formaram então as nossas instituições contemporâneas e as nossas categorias de pensamento. O intrincado é muito denso para que possamos destrinchá-lo em suas partes constituíntes atualmente, mas podemos perceber algumas raízes aqui e acolá ao longo do tempo. 

Paul Diel e sua interpretação ético-psicológica
Segundo Paul Diel as figuras mais significativas da mitologia grega, em particular, representam, cada uma, uma função da psique e as relações entre elas exprimem a vida psíquica dos homens, divididas entre as tendências opostas que vão da sublimação à 'perversão' (a idéia de 'perversão' segue praticamente de forma patológica o desenvolvimento da interpretação de Diel, formando um eixo interpretativo que nem sempre desencadeia em uma compreensão plena do seu caráter simbólico e a-ético).

"O espírito é Zeus; a harmonia dos desejos, Apolo; a inspiração intuitiva, Palas Atena; o refluxo, Hades etc. O elã evolutivo (o desejo essencial) encontra-se representado pelo herói; a situação de conflito da psique humana, pelo combate pelos monstros da perversão. Todas as constelações, sublimes ou perversas, do psiquismo, são assim sucetíveis de encontrar sua formulação figurada e sua explicação simbolicamente verídica com o auxílio do simbolismo da vitória ou da derrota de tal ou tal herói em seu combate contra tal ou tal monstro de significação determinada e determinável" - Paul Diel

[Ensaio virtual em constante atualização]


Por Renato Kress

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Bibliografia:
Dicionário SESC, a linguagem da Cultura.
Dicionário do Pensamento Social do Século XX
Mitologias, Roland Barthes
Mythes, rêves et mysteres, Mircea Eliade
Interpretações estruturais dos mitos bíblicos, Edmund Leach & Alan Aycock.
Mitológicas, Cláude Lévi-Strauss
Magia, ciência e religião e outros ensaios, Bronislaw Malinowski.
Reflexões sobre a violência, Georges Sorel
Mito político, H. Tudor
Mito e Símbolo, Victor Turner
Dicionário de Símbolos, Jean Chevalier & Alain Gheerbrant
História das Crenças e das Idéias Religiosas, Vol. 1, 2 e 3, Mircea Eliade

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