terça-feira, 18 de setembro de 2018

Hades: Suicídio e silêncio

“Há momentos em que silenciar é mentir” - Miguel de Unamuno
Ao tratarmos de Hades nos encontros virtuais Mito e Mente sempre falamos da luz e da sombra dos aspectos relacionados à morte. É comum entre os junguianos a tendência de trabalhar o tema através da perspectiva da morte como transformação. Afinal, para Jung, o psicólogo que mais e melhor se debruçou sobre os mitos originários e modernos, todo o processo psíquico é exatamente isso, um processo! Ele tem um rumo, uma orientação “teleológica” - orientada para um fim, para uma finalidade ou meta - ou ao menos um “fluxo” - para os mais pragmáticos. Pois bem, a vida psíquica, como a vida orgânica está em fluxo, é profunda e constante transformação.
Represa Por esse viés das trocas energéticas efetuadas entre os diferentes complexos psíquicos ou sociais muitas vezes não percebemos que há, também, a possibilidade de interrupção desse fluxo, de escoamento final, de corte. Procuramos virar o rosto para a possibilidade fatal, para o acelerar fatal do processo a que todos tendemos. Faz parte da nossa reação de horror à sombra, ao pânico em lidar com aquilo que identificamos como incômodo, incerto, misterioso e hediondo.
Na Grécia Antiga evitava-se pronunciar o nome do deus Hades. Não era interessante invocar (do latim invocare “chamar para perto”) o deus do subterrâneo. Pois bem, estamos aqui para romper esse silêncio. Estamos aqui para viver em voz alta.
Sociologia do Suicídio
Émile Durkheim foi o primeiro sociólogo a estudar o suicídio como um “fato social”, como um fato relacionado diretamente a determinadas relações sociais, culturas e crenças sociais. Para ele os indivíduos eram integrados e regulados, em maior ou menor escala, através de “forças sociais” que poderiam ser estudadas e analisadas numericamente.
Da obra de Durkheim, O Suicídio (1897), temos a distinção entre três formas de suicídio: o suicídio anômico, o altruísta e o egoísta.
Suicídio Anômico: Em linhas gerais o primeiro, o suicídio anômico, trata do autoextermínio causado pela ausência de regras que mantenham a coesão e a coerência social (“anomia”, do grego ἀνομία - “ausência de regra”, “privação da lei”). É importante compreender que as regras sociais não cumprem apenas a função de nos limitar e tolher nossos desejos e impulsos, mas também de dotar de sentido, de direção e significado, as nossas ações dentro de uma determinada coletividade. Nesse sentido o caos gerado por grandes e aceleradas mudanças estruturais dentro de uma sociedade pode ampliar muito o número de fatalidades do tipo.
Suicídio Altruísta: Esse tipo de fatalidade ocorre pelo extremo oposto do suicídio anômico. Quando o excesso de regras impostas a uma coletividade se torna insuportável para uma pessoa ou para uma classe, esse tipo de suicídio tende a ocorrer mais. Temos aqui os causados em nome de uma “causa” maior, como da “liberdade” de um povo, uma etnia, e também os cometidos em defesa de um ideal seja ele civil ou religioso.
Aqui se encaixam também os suicídios de políticos japoneses indiciados por corrupção. O mecanismo social que responde por essas situações é a lógica grega do miasma - do grego míasma (“emanação”) - uma espécie de influência social nociva que passa, como que por convivência e contato, do sujeito criminoso para toda a sua família. Resta ao responsável eliminar a si mesmo para eliminar esse mal-estar corruptor do seio de sua família.
Suicídio Egoísta: Esse tipo ocorre quando o sujeito não se sente conectado de forma alguma à sociedade ou à realidade ao seu redor. Normalmente estamos integrados socialmente através dos papéis sociais que interpretamos em nossas vidas: mãe, professora, tio, primo, vizinho, síndico, médico, mecânico, enfim por laços de familiaridade, trabalho, comunidade e obrigações sociais. Quando esses laços são enfraquecidos pela perda de seus referenciais de apoio - perda de trabalho, cônjuge, familiares próximos, status social - o número de suicídios desse tipo aumenta.
Silêncio estatístico
Devemos lembrar sempre que as diferenças culturais entre os povos são fatores tão importantes quanto as culturas às quais esses povos são submetidos. Tendemos a pensar que o egoísmo, assim como o narcisismo, são consequências naturais e quase que inevitáveis da sociedade contemporâneas (pós-industrial). Isso não pode nos cegar para outras formas culturais de lidar com os mesmos problemas. Vejamos o caso do Japão contemporâneo.
No Japão, hoje em dia, a maior parte dos suicídios é causada pela vergonha em não se conseguir se “adaptar” ao ideal social, por fracassar em realizar os objetivos que o grupo impõe sobre seus membros.
A sociologia seguiu, após Durkheim, estudando as variações do suicídio e de suas motivações. Halbwacks (1933), Sainsbury (1955) e Cavari (1965) publicaram, sucessivamente, estudos relacionado o fenômeno social à urbanização e ao isolamento individual. Gibbs e Martin (1964) pensou a conexão entre suicídio e falta de integração de status, Henri e Short (1954) e Maris (1969) à falta de restrição externa e, mais recentemente, Phillips e Carstensen (1988) a efeitos sócio-psicológicos da mídia de massa. Como se vê, o tema é extenso. Mas os estudos sociológicos não ajudaram tanto a evitar os suicídios quanto ajudaram a tornar a sociologia famosa e respeitável no meio acadêmico.
...é imprescindível falarmos de Hades! A mão pesada do silêncio é cúmplice de tragédias futuras!
Problemas
Um dos maiores problemas em lidar com o suicídio é o silêncio. O silêncio que permeia todo o tema. Não podemos, por exemplo, considerar como muito acuradas as estatísticas sobre o suicídio. Da mesma forma como, em geral, temos grande dificuldade em falar com aqueles que ficam sobre aquele que se foi. Acontece que diferentes culturas determinam de forma diferente o que as autoridades entendem como suicídio. Muitos são considerados acidentes e tantos outros como assassinatos. Há um outro fato social a ser considerado aqui: se a autoridade encarregada de fazer o registro da ocorrência não encontrar uma motivação socialmente validada, ou tiver algum interesse - de qualquer ordem! - em acobertar o fato, ele não entrará para as estatísticas.
Por isso também é imprescindível falarmos de Hades! A mão pesada do silêncio é cúmplice de tragédias futuras!
Aspectos psicológicos
Wilhelm Steckel e Alfred Adler estudaram o suicídio como “agressão deslocada”, algo que Freud posteriormente, no seu estudo sobre o luto e a melancolia, definiu como a libido que, uma vez liberta do seu objeto de atenção, se desloca para o ego, criando uma identificação com o objeto de afeição perdido. Se o sujeito se identifica - se liga sua própria identidade, sua essência - a algo que já não mais existe, ele passa então a anular a si mesmo, a negar sua existência, ou ao menos o propósito dela. Em Para além do Princípio do Prazer Freud identifica o suicídio como uma vitória precoce do instinto de morte.
Muitos psicólogos cognitivos tem se embrenhado em pesquisas quantitativas ligadas ao suicídio. Seus estudos, principalmente por serem mais recentes, talvez tenham uma conexão mais forte com a nossa sociedade contemporânea. Uma de suas conclusões sobre o suicídio são: Suicidas em potencial são pessoas com processos de pensamento extremamente polarizados.
Como estudamos nos encontros Mito e Mente, todo pensamento flui entre extremos, entre ausência e presença, falta e excesso. Mas o que caracterizaria o pensamento com tendência suicida seria, justamente, o rompimento do “continuum” entre esses dois pólos, a dificuldade ou incapacidade de enxergar os “tons de cinza” entre o preto e o branco, por exemplo. Pessoas que tendem a enxergar o mundo de uma forma totalitária tenderiam mais ao extermínio de si mesmas.
A Grande Casa
Se pensarmos um pouco essa correlação é até bem simples. Imagine que você está construindo uma casa. Um dos significados do nome Hades é, justamente “a grande casa” ou “aquele que abriga a todos”. Pois bem, estamos construindo uma casa. Imagine que tenhamos três pilares sobre os quais ergueremos tubulação, paredes, vigas, fiação, teto etc. Imagine que um desses pilares, feito de madeira, foi infestado por cupins e cedeu. O que ocorreria com o resto da casa?
Pois bem. Agora imagine que a casa tivesse, como normalmente as casas têm, quatro pilares. Um cede. O estado geral da casa é melhor do que antes, certo? A questão é que em nossas mentes - ao contrário do que se vê no mundo físico e na construção civil - é possível criar estruturas imaginárias com apenas uma pilastra. E elas têm, estruturalmente, a mesma possibilidade de “dar errado” que casas reais construídas apenas com uma pilastra.
Rebaixamento do nível mental
Pessoas que estruturem suas dinâmicas psíquicas dessa forma tendem a entender tudo o que não consigam identificar imediatamente consigo mesmas e com seus valores como “inimigos” em potencial, como algo que, não representando uma identidade consigo mesmas, representa uma oposição a eles e às suas existências, um inimigo, um adversário, algo a er eliminado. É algo semelhante ao que o psicólogo suiço Carl Gustav Jung chamou de “rebaixamento do nível mental”, um estado psíquico caracterizado por pouca imaginação e estreiteza conceitual. Essas pessoas vivem em constante sofrimento existencial e entendem qualquer crítica como uma ameaça à sua própria existência, por isso são tão aferrados aos seus posicionamentos políticos, aos seus times, à sua sexualidade. Muitas vezes esses são os únicos alicerces do edifício psíquico desses indivíduos.
Quando percebem, por algum motivo, que seu alicerce não vai bem, tendem a vivenciar estados profundos de desesperança, fatalismo, hostilidade difusa e baixa-autoestima. Sem um grupo identitário novo ao qual possam se ligar, ampliando seu senso de pertencimento e reforçando suas auto-imagens sociais, perdem seus referenciais identitários, tendem ao suicídio.

O ato e o objetivo
Nem toda tentativa de suicídio tem como objetivo o óbito. Às vezes a voz calada está apenas gritando por socorro. Quando fui convidado pelo canal Unidiversidade, da Fiocruz, para falar sobre novos caminhos para a masculinidade, conheci o Dr. Mauro Barbosa que me deu a melhor metáfora sobre a potência do grito feminista contemporâneo: imagine uma pessoa sufocada, por uma forte mão, por anos e anos. Impossibilitada de falar, impossibilitada de ter vez e voz, toda expressão relegada a subterfúgios, toda vontade submetida a outras vontades, por toda a vida. Imagine que, por algum motivo, alguém ou algumas pessoas, retiraram aquela mão opressora de cima dos lábios dessa pessoa. Ah, ela não vai agradecer em voz baixa, não! Ela não vai falar manso! Ela vai gritar, ela vai berrar! Finalmente ela vai viver em voz alta!
A intenção de muitas tentativas de suicídios é justamente fazer a ponte não entre a vida orgânica e o mistério profundo do devir pós-orgânico, mas fazer a ponte, dar o salto, entre a sobrevivência submissa e o voltar a viver - talvez o começar a viver! Por isso também é necessário romper o silêncio.
...a própria ideia de “resiliência” como submissão silenciosa e eterna a pressões laborais e existenciais crescentes, é revestida estrategicamente de uma aura “heróica”. Na cultura corporativa contemporânea, se submeter é ser “herói”.
Comportamento limite
Aprendemos, através dos estudos mitológicos de Karen Armstrong, que uma das funções do mito é falar sobre os assuntos-limite, é estruturar nossa relação com aquilo que nos define, orienta e cerceia. Pois bem, a maioria dos comportamentos suicidas são comportamentos de aceitação de riscos, comportamentos feitos para testar limites.
Claro que para fazer um teste sincero dos limites, não devemos ter certeza dos resultados. O resultado deve estar dentro de uma área borrada, de incerteza e insegurança. Existe aí o tema do “parasuicídio”, o suicídio de alguém que está testando os limites estabelecidos pelo bom-senso, pelas leis, família, sociedade ou crenças.
Como trabalhamos no nosso encontro Mito e Mente Hermes, a incerteza, a insegurança e o medo são instrumentalizados como técnicas de venda ao extremo, fazendo do sujeito que se submete a essa insegurança estrutural difusa e esmagadora, o comportamento ideal, a atitude esperada por alguém que “resiste”, que é “resiliente”. Como trabalhamos no nosso encontro Mito e Mente Atená, a própria ideia de “resiliência”, como submissão silenciosa e eterna a pressões laborais e existenciais crescentes, é revestida estrategicamente de uma aura “heróica”. Na cultura corporativa contemporânea se submeter é ser “herói”. Uma reversão perversa que trabalhamos melhor no nosso encontro Mito e Mente Ares.
Resposta ética
Dá novo fôlego saber que, atualmente, a ética do suicídio tende a não mais culpabilizar a vítima. Na realidade a própria ideia de “culpa” saiu do centro das atenções. A preocupação hoje em dia está mais em perceber as motivações mais recorrentes para o suicídio e, então, combatê-las, evitá-las.
Cada ser é único em sua psique, história e aspirações. Mesmo pessoas que vivem nos mesmos círculos sociais percebem e registram de formas diferentes suas experiências e a forma como cada uma delas os afeta. Cada um sabe como, onde e de que maneira o calo aperta.
A forma mais humana e responsável de lidar com esse tema é a escuta sem julgamento, romper a barreira do silêncio e continuar rompendo ela através de perguntas. Perguntas podem até ser invasivas, colocar em xeque muitas das certezas e concepções que o sujeito possa ter sobre a vida, mas a pergunta não impõe, a pergunta se importa.
Escuta sem julgamento
A forma mais humana e responsável de lidar com esse tema é a escuta sem julgamento, romper a barreira do silêncio e continuar rompendo ela através de perguntas. Perguntas podem até ser invasivas, colocar em xeque muitas das certezas e concepções que o sujeito possa ter sobre a vida, mas a pergunta não impõe, a pergunta se importa. Através da pergunta podemos dar um sentido para o silêncio, um sentido para o fluxo que o silêncio contém.
Ação e performance, o teatro social
Toda ação social é performática. Estamos imersos em papéis sociais que representamos melhor ou pior ao longo da vida. Eles representam a nossa “persona” (palavra grega para “máscara). É preciso que essa máscara seja porosa, que possamos respirar através dela.
Essas máscaras, de filho, filha, profissional, irmão, amiga, são inevitáveis, e é imprescindível que não façamos delas forcas ou mordaças. Do contrário podemos nos sentir frustrados pelos extremos. Seja porque nunca saímos daquele personagem que nos impõem, seja por nunca entrarmos no personagem que esperam de nós.
Por isso no estudo do silêncio e do suicídio que fiz para essa apostila Mito e Mente Hades, fui estudar os diferentes silêncios na teoria do teatro.
Teoria dos Silêncios
Na teoria do teatro temos diferentes formas de silêncio.
O silêncio natural. O primeiro com o qual entrei em contato foi o silêncio considerado “natural”, as pausas entre as palavras, tempo natural da respiração, silêncio que não tem, em si, um significado profundo. A não ser nos casos bem diretos em que nega, pela sua presença alongada ou por algum pantomima (mímica cênica), o dito anterior. A esse silêncio chamei de “natural”.
O silêncio soluçado. Mas existe também a dramaturgia do silêncio, o naturalismo de um Tchekhov, onde personagens não ousam ou não podem verbalizar seus pensamentos em cena. Há ali um interdito, um tabu, uma relação psíquica de anseio e privação ligada à comunicação. São obrigados - ou se entendem obrigados - a se comunicar por meias palavras, a um falar sem sentido que muitas vezes denuncia uma pura função fática, a pura necessidade de manter próximo um interlocutor. Essa fala, entrecortada e sem significado em si, talvez prenuncie o início da quebra do silêncio, ou pelo menos denuncie a carência de um contato social mais significativo. A esse silêncio chamei de “soluçado”.
O silêncio óbvio. Para além desse silêncio temos também o silêncio decifrável, aquele cujo sentido é óbvio, mas toca um tema tabu que incomoda aos presentes, então permanece recalcado, represado. Quantas vezes não cerceamos o caminho para fora desse silêncio com piadas, mudanças de tema e assunto, desvios vários da atenção? A força maior está sendo feita sempre de dentro pra fora, no sentido de romper a barreira de aço que nos força a gravitar pela superfície do cotidiano, sem nos aprofundarmos, sem nos importarmos, submersos na frágil ilusão de “invulnerabilidade” que a velocidade do pensamento passa para o lento e gástrico sentimento. A esse silêncio chamei de “óbvio”.
O silêncio jargão. Existe um silêncio extremamente falante, inconvenientemente falante. Ele é completamente preenchido por jargões, palavras de ordem e repetições superficiais de slogans e memes. Ele denuncia imediata e claramente a alienação (desconexão) entre a fala e o contexto, entre a experiência e o rótulo, entre o conhecimento e a generalização. É o silêncio que vemos aí, berrando nas ruas palavras de ordem, impedindo qualquer contato. Ele também é um sintoma de profundo sofrimento psíquico. O sujeito submerso nesse tipo gritante e histriônico de silêncio, em geral, está pedindo socorro, para aquela única pilastra que sustenta todo o edifício de sua identidade e que, por algum motivo, ele vê a perigo. É difícil abordar esse silêncio, muito difícil. Principalmente porque ele não consegue ficar calado. A esse silêncio chamei de “jargão”.
O silêncio metafísico. Existe um silêncio que é resultado de um sentimento de arrebatamento diante dos mistérios da existência, um silêncio que é um calar-se diante do impenetrável dos mistérios do universo. Talvez a esse silêncio se referissem os gregos quando diziam que não se deveria falar sobre Hades. Não porque estaríamos invocando ele, apressando nosso inevitável destino ou causando uma “vitória precoce do instinto de morte” como diria Freud, mas porque, em última instância, esse mistério é insondável. Esse silêncio também precisa ser quebrado, pois, se não transformado em poesia, literatura ou conversa, pode ser extremamente opressor. A esse silêncio chamei de “metafísico”.
As duas experiências limites que trouxeram Hades para a superfície, o amor e a dor, foram experiências de profunda ressignificação e ampliação do Self de Hades.
Resgate do Self
Hades só subiu ao reino dos vivos duas vezes. Uma pelo amor a sua sobrinha Koré - que viria a transformar-se em sua esposa Perséfone - e outra pela dor da flechada que recebeu no ombro, causada por seu sobrinho Hércules. Em todo o resto da mitologia ele permaneceu nas sombras de seus domínios, e era impossível discernir exatamente a natureza de suas ações por lá.
É difícil trazer essa energia que Hades representa para a luz, para a “consciência”. É mesmo raríssimo conseguir esse feito. Exige coragem para lidarmos com a verdade dessa potência do inconsciente, com nossas sombras, recalques e medos. Mas é através desse enfrentamento que Hades é reestruturado, modificado, “humanizado” se quisermos uma metáfora esperançosa.
As duas experiências limites que trouxeram Hades para a superfície, o amor e a dor, foram experiências de profunda ressignificação e ampliação do Self de Hades. Já falamos anteriormente sobre essas experiências e seus significados, então aqui falaremos apenas das mudanças no Self social.
Self Social
Na sociologia, diferentemente do conceito que encontramos na psicologia analítica, o Self é um conjunto relativamente estável de percepções que alimentamos sobre quem somos. Esse conjunto é baseado em expectativas sociais e organizado em torno de um autoconceito. O autoconceito é formado pelas ideias e sentimentos que temos sobre nós mesmos.
Quando Hades sobe ao Olimpo para ser curado da flechada de Hércules que, por conter o sangue-veneno da Hidra de Lerna, causava uma ferida incurável e eternamente aberta, ele foi recebido com carinho e atenção, com respeito e dedicação por Apolo. Foi o próprio Apolo, deus conhecido por sua arrogância e petulância, quem cuidou pessoalmente da ferida e realizou o milagre da cura do incurável.
Para a lógica dualista de uma mente polarizada, o deus da luz Apolo, ao encontrar com o deus invisível Hades, deveria entrar em conflito, debate, discórdia. Mas o mito nos mostra o oposto. Apolo atende imediatamente seu tio Hades, com respeito e seriedade.
Como lembramos, o motivo da flechada de Hércules contra Hades foi a recusa, do deus dos mortos, a liberar seu cão Cérbero, para que fosse levado até Euristeu em Micenas, como realização do seu último trabalho. Hades estava inflexível. Sua inflexibilidade expôs uma ferida, uma vulnerabilidade insuportável tratada por Apolo. Voltando para casa Hades libera Hércules para levar Cérbero, seu cão de três cabeças, como forma de cumprir sua última tarefa. Desde que o sobrinho depois trouxesse de volta o guardião dos “ínferos” (regiões inferiores). Depois da ferida Hades, recebido com respeito e reverência por Apolo, tornou-se flexível.
O que esse mito do deus da morte fala a você?
Dar voz a Hades é perguntar e ouvir! Apenas a pergunta resgata do silêncio a torrente genuína do discurso de forma respeitosa e solene, com a seriedade que ele exige.
A imagem de espelho
Grande parte do simbolismo do mito de Hades está no fato de que ele é invisível, de que ele pode nos rondar dia e noite sem que tomemos conhecimento disso. O sociólogo Charles Cooley criou o termo “imagem de espelho” para designar a maneira como pensamos que outras pessoas nos vêem e avaliam. Essas ideias que fazemos do que os outros pensam sobre nós em geral estão alicerçadas em ideias gerais sobre nossos status sociais, sobre os papéis sociais que ocupamos etc. Ser mãe é, em grande parte, recorrer a ideias culturais sobre mães e é contra esse padrão generalista que medimos nosso sucesso e fracasso diante da vida.
Pode parecer igualmente fascinante ou assustador quando estamos muito distantes dos padrões que julgamos que esperam de nós. “O que deveríamos ser” pode ser definido sociologicamente como “eu ideal”. Ele é uma integração entre nosso autoconceito e o “eu social ideal”, aquilo que os outros esperam de nós. A relação de proximidade ou afastamento entre como nos vemos (autoconceito) e o que deveríamos ser (self ideal) é o que forma a nossa auto-estima.
Tudo isso deve ser trazido à consciência quando estamos genuinamente fazendo nosso melhor para romper a barreira do silêncio, quando estamos trazendo Hades à superfície, mesmo que por alguns segundos. Afinal, às vezes, mesmo o independente, todo-poderoso e autossuficiente deus do silêncio, precisa de cuidado.
Estamos o tempo todo falando, na consciência. Dar voz a Hades é perguntar! Apenas a pergunta resgata do silêncio a torrente genuína do discurso de forma respeitosa e solene, com a seriedade que ele merece e exige.
Na perigosa e necessária jornada de reestruturação do Self, como você pode romper o silêncio?
Por Renato Kress Antropólogo e Cientista Político Especialista em Psicologia Analítica Criador dos encontros Mito e Mente Coach Pessoal e Profissional

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