Antes de ser o feriado dos coelhos e ovos de chocolate a páscoa significava, para os católicos, a libertação de todos os que estavam separados de Deus pelo pecado, comemorada junto com o dia da ressurreição de Cristo após a crucificação. Antes disso ela significava, para os judeus, a "Pessach", ou a passagem do anjo da morte que levou os primogênitos egípcios e poupou os primogênitos judeus, abrindo caminho para a fuga dos hebreus (judeus) do Egito e a sua "libertação" da escravidão. Ainda muito antes disso, na Babilônia (antiga Suméria), na mesma época do ano, comemoráva-se o aniversário/ritual da deusa Ishtar (pronuncía-se "Easter"), deusa da fertilidade, da procriação e do constante renascimento da colheita, das flores e do campo. Os símbolos da deusa Ishtar (também conhecida como Inana) eram o coelho, símbolo da promiscuidade criadora e da fertilidade, e o ovo cósmico, que, ao quebrar-se, liberou toda a força e potência criadora do mundo. Essencialmente era uma festa para comemorar a vida!
A esquecida mensagem do vândalo
Temos, na nossa comemoração do que chamamos de Páscoa, a tradição de darmos ovos de chocolate - inexplicavelmente trazidos numa cesta por um coelho bípede - para crianças. Alguns ainda se lembram da "libertação" de um revolucionário (vândalo) judeu que pregava o amor universal, mas a instituição que procura falar em seu nome nem sempre lembra-se de levar a mensagem do jovem que genial e humanísticamente reuniu todo o pentateuco em apenas um mandamento: "Amai ao próximo como a ti mesmo.". Quase ninguém se lembra de Ishtar (embora todos os povos de língua inglesa se refiram à data usando o nome da deusa).
Crianças tribais
Quase todos nós nos escondemos (ou nos perdemos) dentro de nossas casas, cobrindo os umbrais de nossas portas com nossa indiferença cega, esperando poder salvaguardar nossas famílias, nossas crianças e a nós mesmos da vinda do "anjo da morte", do terror e da violência que nos visita "lá fora". Na nossa ilusão de pluralismo, ainda somos temerosas crianças tribais.
Fronteiras e zonas de conforto
Criamos nossas portas e acreditamos nelas. Acreditamos que enquanto estivermos "dentro" nos protegeremos dos perigos e incertezas do caos "lá fora". Acreditamos que existe realmente a possibilidade de sermos "escolhidos" ou "preferidos" diante do medo, da morte e da violência que não atravessará nossas fronteiras íntimas e fará vítimas apenas entre os "impuros", os "maculados" pela preguiça, pela pobreza, pela ira de um "Deus" que é justo com os "justos" e injusto com os "injustos". Um "Deus" que poderíamos chamar de ego, ou de comodismo.
Negação e inflação do ego
A inconveniente consciência
Sabemos, intimamente, que isso é uma grande mentira! Que um pobre palestino, uma criança negra na Maré e um neto de um magnata não têm as mesmas chances em suas jornadas.
Sabemos, cada vez mais, que o valor de uma vida tem sido medido pelo seu crédito bancário. Sabemos que o medo que instauramos através do terror policial "lá fora" é o mesmo medo, a mesma onda, que rebate num rufar cardíaco nos nossos espaços "aqui dentro". É o medo que vende remédios contra a ansiedade, armas contra a violência, grades, portões e armaduras para as polícias urbanas. É o medo que impede a abertura de uma Catedral para receber refugiados de uma guerra pelo lucro, a mesma guerra de sempre. É o medo da repercussão na mídia que fez com que a polícia avançasse um pouco menos do que pretendia, quando empurrava mulheres, crianças, mães, pais e recém-nascidos para longe da vista, numa verdadeira via crucis pela cidade do Rio de Janeiro, durante a comemoração da Páscoa. O medo de agredir algum cidadão de classe média que estava se colocando entre as famílias e o avanço da polícia foi o que impediu uma chacina. O medo de ser maculado pela presença dos "impuros" fez com que um representante da Igreja ligasse caixas de som, de madrugada, para cantar no máximo volume, tentando expulsar a "chaga", o "estigma", para longe da "imaculada" casa de um "Deus" esquizofrênico, que ainda não tornou sagrada a vida e sim as relações que multiplicam o lucro.
Esperança, um comichão cardíaco
Esperamos que o Papa consiga reverter essa relação e temos fé num sujeito, o que é muito salutar desde que "oremos e vigiemos". Ainda precisamos de muita humildade e senso de realidade para percebermos que a fé é o combustível para empurrar a montanha, que o combustível não age sem a centelha divina que carregamos em nós: o potencial para amarmos ao próximo como a nós mesmos. Aquele mesmo papo igualitário de perdão e união, a mesma "boa nova" do "vândalo" de Nazaré.
Me pergunto se algum dia, ao invés do medo, comemoraremos com Jesus, com Adonai, Ishtar, Oxalá, Budha, Brahma e Rá, alguma real Páscoa, o ressurgimento, através do ovo cósmico palpitando em nossos peitos, da vida.
Texto por Renato Kress
A esquecida mensagem do vândalo
Temos, na nossa comemoração do que chamamos de Páscoa, a tradição de darmos ovos de chocolate - inexplicavelmente trazidos numa cesta por um coelho bípede - para crianças. Alguns ainda se lembram da "libertação" de um revolucionário (vândalo) judeu que pregava o amor universal, mas a instituição que procura falar em seu nome nem sempre lembra-se de levar a mensagem do jovem que genial e humanísticamente reuniu todo o pentateuco em apenas um mandamento: "Amai ao próximo como a ti mesmo.". Quase ninguém se lembra de Ishtar (embora todos os povos de língua inglesa se refiram à data usando o nome da deusa).
Ishtar, em inglês "Easter", deusa da vida. |
Quase todos nós nos escondemos (ou nos perdemos) dentro de nossas casas, cobrindo os umbrais de nossas portas com nossa indiferença cega, esperando poder salvaguardar nossas famílias, nossas crianças e a nós mesmos da vinda do "anjo da morte", do terror e da violência que nos visita "lá fora". Na nossa ilusão de pluralismo, ainda somos temerosas crianças tribais.
Fronteiras e zonas de conforto
Criamos nossas portas e acreditamos nelas. Acreditamos que enquanto estivermos "dentro" nos protegeremos dos perigos e incertezas do caos "lá fora". Acreditamos que existe realmente a possibilidade de sermos "escolhidos" ou "preferidos" diante do medo, da morte e da violência que não atravessará nossas fronteiras íntimas e fará vítimas apenas entre os "impuros", os "maculados" pela preguiça, pela pobreza, pela ira de um "Deus" que é justo com os "justos" e injusto com os "injustos". Um "Deus" que poderíamos chamar de ego, ou de comodismo.
Negação e inflação do ego
A inconveniente consciência
Sabemos, intimamente, que isso é uma grande mentira! Que um pobre palestino, uma criança negra na Maré e um neto de um magnata não têm as mesmas chances em suas jornadas.
Sabemos, cada vez mais, que o valor de uma vida tem sido medido pelo seu crédito bancário. Sabemos que o medo que instauramos através do terror policial "lá fora" é o mesmo medo, a mesma onda, que rebate num rufar cardíaco nos nossos espaços "aqui dentro". É o medo que vende remédios contra a ansiedade, armas contra a violência, grades, portões e armaduras para as polícias urbanas. É o medo que impede a abertura de uma Catedral para receber refugiados de uma guerra pelo lucro, a mesma guerra de sempre. É o medo da repercussão na mídia que fez com que a polícia avançasse um pouco menos do que pretendia, quando empurrava mulheres, crianças, mães, pais e recém-nascidos para longe da vista, numa verdadeira via crucis pela cidade do Rio de Janeiro, durante a comemoração da Páscoa. O medo de agredir algum cidadão de classe média que estava se colocando entre as famílias e o avanço da polícia foi o que impediu uma chacina. O medo de ser maculado pela presença dos "impuros" fez com que um representante da Igreja ligasse caixas de som, de madrugada, para cantar no máximo volume, tentando expulsar a "chaga", o "estigma", para longe da "imaculada" casa de um "Deus" esquizofrênico, que ainda não tornou sagrada a vida e sim as relações que multiplicam o lucro.
Esperança, um comichão cardíaco
Esperamos que o Papa consiga reverter essa relação e temos fé num sujeito, o que é muito salutar desde que "oremos e vigiemos". Ainda precisamos de muita humildade e senso de realidade para percebermos que a fé é o combustível para empurrar a montanha, que o combustível não age sem a centelha divina que carregamos em nós: o potencial para amarmos ao próximo como a nós mesmos. Aquele mesmo papo igualitário de perdão e união, a mesma "boa nova" do "vândalo" de Nazaré.
Me pergunto se algum dia, ao invés do medo, comemoraremos com Jesus, com Adonai, Ishtar, Oxalá, Budha, Brahma e Rá, alguma real Páscoa, o ressurgimento, através do ovo cósmico palpitando em nossos peitos, da vida.
Texto por Renato Kress