"Zeus, o legislador aflito
Em uma religião em que divindades se sobrepõem sobre um significado e que significados sobrepõem-se sobre uma única divindade, a divindade suprema é o superlativo dos mais diversos significados que englobam o arquétipo-guia, o fio condutor, legislador e mantenedor da ordem. Numa realidade mitológica rica, complexa e densa como a grega a divindade suprema representa também a descida às trevas e o retorno, a vitória, da luz renascida.
Zeus, palavra que advém do indo-europeu “deiws” e do índico “dyaus”, donde advém “dyaus pitar” [deus pai], que gerou o latim diou+piter Júpiter, ou o germano “tues” (tues + Day Tuesday, o dia de Deus, Zeus, Odin, Wotan...), donde se conclui que, para além das significâncias conjugadas, a principal função de Zeus, aquela que se sobressai no cruzamento das culturas, é a de ser “pai”. Portanto na cultura e na religião gregas Zeus representava e servia de arquétipo para a estruturação moral, intelectual e espiritual dos homens e dos deuses, representando a lei, as instituições da Pólis (cidade) e do logos (razão).
Para uma boa descrição da representação de Zeus dentro da mitologia grega, seria proveitoso destrinchar o termo logos e as suas concepções, todas relacionadas ao princípio Jupteriano de alicerce universal. Em Heráclito, o Logos seria o princípio cósmico que confere ordem e racionalidade ao mundo, de forma análoga a como a razão humana ordena a ação humana, portanto Zeus representa tanto a ordem mundial quanto a consciência humana, em sua luminosidade sobre nossos demônios interiores, como um padrão ético ou arquétipo moral. No estoicismo temos a razão seminal (logos spermátikós) que é a fonte cósmica da ordem: seus aspectos são o destino, a providência e a natureza, características que se confundem, dentro das histórias da mitologia, com a área de poder e influência de Zeus. O logos têm ainda uma outra perspectiva: permite-nos apreender os princípios e as formas, ou seja, um aspecto da nossa razão. Esta noção está presente na idéia posterior de leis da natureza, se forme concebidas como princípios independentes, reguladores do curso natural dos acontecimentos, existindo, no entanto, além desse mundo temporal que regulam. Essa é, em parte, a representação de Zeus, ponto onde o Grande Pai, Legislador, Senhor e Herói grego convergem no logos.
Simbolismo do rei dos Deuses
Em Chevalier Zeus representa “o reino do espírito. É o organizador do mundo exterior e interior; é dele que depende a regularidade das leis físicas, sociais, morais.”. Ele é, segundo Mircea Eliade “o arquétipo do chefe da família patriarcal. Deus da luz, é o soberano pai dos deuses e dos homens”. Em Ésquilo “Zeus é o éter. Zeus é a Terra. Zeus é o Céu. Sim, Zeus é tudo o que há acima de tudo”.
Ainda em Chevalier “a concepção de Zeus como divindade surema e como força universal evoluiu muito a partir dos poemas homéricos e chegou, entre os filósofos helenísticos, à concepção de uma providência única. Entre os estóicos Zeus é o símbolo do Deus único que encarna o Cosmo. As leis do mundo não passam de um pensamento de Zeus. O mito de Zeus é o de um líder nato, do qual advém todo o poder e a justificação de todo o autocratismo e que reveste as formas diversas do pai, do mestre, do professor, do chefe, do patrão, do proprietário, do juiz, do marido, do ser que detém o segredo e de quem depende a iniciativa em todas as coisas”.
Destes pontos de interpretação da figura divina de Zeus podemos compreender o epíteto de “Zeus Polieus”, protetor da Pólis e das Leis, e também da compreensão de que o reinado de Zeus equivale ao reinado do espírito soberano que ordena o cosmo segundo os princípios racionais e justos.
Patrono de heróis, o modelo maior de heroísmo
Sendo o modelo do ideal de todo herói, Zeus é chamado “pai dos deuses e dos homens”, protegendo e guiando seus filhos mortais para que se tornem grandes heróis. Zeus passa por várias “mortes simbólicas”, ritos de passagem, “regressus ad uterum” (regresso, volta ao útero), Unio Mysticas (uniões sagradas com um fim maior), e uma mutilação, que representa a marca física de uma mudança espiritual, uma condição para o renascimento constante do herói em novos estágios da existência. Essa mutilação representa uma diferenciação de Zeus perante seus irmãos (principalmente os homens, Hades e Pósidon, que em muitas versões míticas ao gêmeos), uma eleição, tanto quanto uma maldição, a condição de ímpar, de único. Como guia de seus filhos mortais nesses mesmos ritos Zeus também não deixa a desejar, mostrando mais uma vez ser a personificação do superlativo em tudo a que se propõe.
Representações e espelhamentos filiais
Algumas representações de Zeus podem ser encontradas nas façanhas de seus filhos, a exemplo de Hércules, seu filho mais famoso: em nenhum momento, em todas as suas aventuras dentro dos famosos 12 trabalhos impostos por Hera (esposa enciumada de Zeus que vingava-se no rebento ilegítimo de seu marido, pois não tinha como se rebelar contra o todo-poderoso pai dos deuses) através de Euristeu, Hércules deixou de usar o raciocínio, o logos, a consciência, para livrar-se dos desafios ou para usá-los como alavancas que facilitassem a resolução da próxima etapa de sua jornada. O uso da inteligência, da sapiência, constantemente, assim como a honestidade e o empenho incansável na busca da redenção e do perdão pelo crime cometido, faz de Hércules um representação em menor escala dos atributos positivos de seu pai. O mesmo se efetua em suas beberagens e façanhas exuais. Essa questão justifica tanto o apoio de seu pai em suas empreitadas e a companhia da Vitória (Nike, uma deusa que acompanhava a Zeus e Atená), atributo paterno de Hércules, quanto sua posterior Apoteosis, sua ascensão ao caráter de divindade.
Trajetória de um Deus-Rei
Representando o superlativo da centralização de funções e poderes já desde o seu nascimento e toda a sua trajetória de disputas, iniciações e casamentos antes e depois do seu casamento oficial com Hera, Zeus era o deus de quem dependiam o Céu, a Terra, a Polis (cidade), a família (patriarcal) e os homens. A vitória de Zeus contra os Titãs e contra Tífon representa a vitória da luz sobre as trevas, da ordem sobre o caos (Kháos, divindade primordial indiferenciada), da consciência sobre os instintos animais.
Casamentos, projetos de poder
O casamento de Zeus com Têmis (deusa primordial da Justiça) e a reestruturação do significado do ideal de Justiça para os gregos foi um importante passo para a depuração do sistema judiciário grego.
O posterior casamento oficial de Zeus com Hera pode representar um apaziguamento com o qual Zeus teve de arcar com uma divindade essencialmente representante das mulheres, principalmente como esposas, e protetora do casamento, assuntos e questões que, por natureza patriarcal e onipotente, Zeus, a princípio, não se mostrava muito disposto a considerar.
Segundo Sir J.G. Frazer em “O Ramo Dourado”, o relacionamento de Zeus com Hera representava, também, principalmente, uma união do céu chuvoso, como logos spermátikos, como chuva-esperma que fecunda a terra num casamento das forças vegetativas, com a intenção de evitar o fracasso das colheitas. Essa visão pode contar com a perspectiva de que Hera fosse uma filha de Réa e, portanto, uma divindade também de alguma forma terrena ou que Hra fosse, de alguma maneira, assim como – embora em escala possivelmente inferior – Deméter, uma herdeira do trono matriarcal-telúrico(tereno) de Gaia e Réa.
Após seu casamento com Têmis, Zeus é o deus supremo da Justiça, pois distribui com equidade as alegrias e as tristezas, os bens e os males. É o modelo de toda soberania, conferindo poder e legitimidade às leis, instituições e reis humanos. A característica de Zeus como um deus da execução judicial está mais explícita em Homero, onde, em diversas cenas de batalhas centrais da ilíada, o pai dos deuses coloca sobre uma balança de ouro a “quer”, o destino, o peso do destino de cada combatente, determinando quem irá perecer e quem irá sair vencedor.
Com mil raios e trovões
Zeus também é o deus dos fenômenos atmosféricos, ele é o “acumulador de nuvens”, “o que faz chover”, “o de nuvens negras”, “o que lança raios”, o “trovejante”. Essa característica está ligada a dois ramos interpretativos que comungam uma raiz única. A princípio a raiz física, material, da chuva enquanto símbolo da fecundidade da terra e da renovação da vida (que apazigua os ânimos de Gaia), como o céu que faz amor com a terra e gera o novo fruto, como no mito de Perséfone, Deméter, Hades e Zeus. E, por último, mas não menos importante, seu caráter espiritualizado, divino, superior, elevado tanto no sentido olímpico – fato de estar no pico de uma montanha – quanto no sentido de elevação espiritual, de compreensão dos significados ocultos da vida e dos grandes ciclos da existência histórica grega.
A maldição familiar
O casamento de Zeus com Métis dá a Zeus sua filha preferida Atená. Essa é a primeira vez das várias em que Zeus se livra da maldição familiar. Na obra “Prometeu Acorrentado” deste último, Prometeu revela a Zeus de forma indireta, após ter sido libertado por Hércules, que o Cronida seria destronado pelo filho que teria do caso que mantinha com Tétis, uma oceânide lindíssima, pois o fiho que esta tivesse estaria predestinado a ser muito mais poderoso do que o próprio pai. Compreendendo o recado e, sempre ciente do fantasma de sua maldição familiar, Zeus apressou-se em forçar o casamento de Tétis com um humano, do qual, por mais poderoso que lhe saísse o filho, não representaria risco para o grande trovejante. Graças a mais esta situação em que Zeus “driblou” seu destino familiar, o seu daimon da genós, toda uma raça de heróis e semideuses pereceu em Tróia. Tanto no caso de Atena e sua mãe, assumida como característica de Zeus num ato que lembra o padrão de Cronos em devorar seus “problemas”, quanto em Aquiles é possível que o padrão da maldição familiar seja rompido, mas nuna sem grandez perdas ou “regressões perigosas” para Zeus e seus protegidos.
Outras uniões de Zeus
Outras várias foram as uniões do rei dos deuses. Com Maia gera Hermes, com Leto gera Apolo e Ártemis. Quanto aos “casamentos” de Zeus com mulheres mortais temos Alcmena, que gerou Hércules, Sêmele que gerou Dioniso, Leda que gerou Helena, Clitemnestra, Cástor e Pólux, Io com quem gerou Épafo e Dânae, com quem gerou Perseu, um dos primeiros heróis gregos, além de várias outras escapulidelas menos memoráveis.
Nada melhor, para terminar a decrição das atribuições de Zeus, que o hino a Zeus, de Cleanto (nascido em 331 a.C.) que marca o auge dessa ascenção de Zeus ao espírito dos homens, até que ele se torne um único deus onipotente, onisciente e muito mais próximo da idéia católica de divindade, que resolverá ter um filho-herói, fundador de uma instituição, que terá novos subdeuses, os santos, e semideuses, os beatos... enfim, ao hino:
“Salve tu, o mais glorioso dos Imortais, Tu que és designado por tantos nomes diferentes, Zeus, eternamente todo-poderoso, tu que és o autor da natureza, e que governas com lei todas as coisas!...
Tanto és em todo lugar senhor supremo do universo inteiro quanto nada na Terra, ó deus, nada acontece sem ti; nada no céu eterno e divino; nada no mar. Nada a não ser o que realiza a loucura dos maus, mas tu sabes reduzir à justa medida o que é excessivo, impor a ordem ao que é desordem e tornar amigas as coisas que te são inimigas...”
- Trecho da apostila do terceiro encontro Mito e Mente; Gerações: De Úrano a Zeus, de Zeus a Dioniso, de Atreu a Orestes, maldições e resgates em família.
Texto de Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA
Criador do projeto Mito e Mente