sexta-feira, 27 de abril de 2012

Trickster: o iluminado trapaceiro das trevas

Calendário Asteca. A espera do
próximo jogo universal...
Quando vemos artigos sobre símbolos, mitos e crenças muitas vezes perdemos a ligação entre aqueles símbolos e o cotidiano natural de uma sociedade. Sorrisos são linguagem universal e assim também a graça, a brincadeira, o jogo, o lúdico. Através dele aprendemos muitas coisas, introjetamos conceitos, crenças e valores que vão alicerçando não só as regras da sociedade em que vivemos, mas principalmente quem somos diante dessas regras e o quanto precisaremos esgarçar uma margem de manobra para expressar nossa personalidade ou se, com sorte, nossa personalidade se adequa bem à sociedade em que vivemos.



Eu só estava brincando...
Segundo o historiador especializado em Roma Antiga A. Piganiol, a função principal dos "ludi" (ludens, lúdico, brincar) era conservar uma força sagrada à qual estava ligada a vida da natureza, de um grupo humano ou de uma personalidade importante. Os jogos rituais constituíam o meio exemplar de rejuvenescer o mundo e os deuses, os mortos e os vivos. Entre as principais ocasiões em que eram celebrados os "ludi", temos os aniversários dos deuses agrários (cerimônias sazonais como a Páscoa etc), os aniversários das vitórias (para reforçar a força divina que garantiu a vitoria) ou a inauguração de um novo período (neste caso os jogos "tinham como objetivo garantir a renovação do mundo, ou até um novo término do mundo").

Brincar, jogar, interpretar é também uma forma de apreender os conceitos da sociedade e cultura em que estamos inseridos. Por isso é importante o estudo da brincadeira e do jogo contemporâneos. Porque eles são fatores importantíssimos de socialização. Quando estava na minha graduação quis fazer uma monografia sobre "cultura infantil" e fui obrigado a desistir do tema, porque os estudos na área eram extremamente escassos e, segundo alguns professores, eu não teria bibliografia suficiente para levar a empreitada a um bom termo. Fiquei impressionado como o consenso sobre a infância ser a principal fase de socialização do indivíduo e como, mesmo assim, essa fase é tão pouco estudada.

Só pode ser brincadeira!
Muitos estudos haviam, a meu ver perversos, no campo do marketing e da propaganda. Estudos aliando consumo, psicologia infantil e técnicas de venda. Isso também é um retrato claro dos valores da sociedade ocidental capitalista.

Mas voltemos à brincadeira. Na Grécia instiuíram-se jogos olímpicos para relembrar grandes vitórias sejam elas míticas ou militares e até hoje corremos a "Maratona" porque os atenienses venceram a primeira Guerra Médica contra os persas e Filípides, um soldado considerado o melhor dos corredores atenienses, teve de correr 42km entre o campo de batalha e a cidade de Atenas para impedir que as mulheres atenienses fossem adiante com o plano de assassinarem seus filhos e suicidarem-se para não serem escravizados caso os persas vencessem.

Na prática a teoria é um jogo
Atualmente a "teoria dos jogos", uma forma de avaliação do comportamento humano e suas decisões em ambientes complexos como uma sociedade, saiu da pura aplicação matemática para ramos como a estratégia militar, jogos de computadores, desenvolvimento de inteligência artificial, ciência política, ética, economia, filosofia, jornalismo, cibernética e outros. Amplos campos integrados onde resultados nunca ou quase nunca têm consequências retilíneas e uniformes, como sociedades, famílias, empresas ou a mente humana, podem ser usados como objetos de pesquisa para compreender a dinâmica envolvida nas atitudes, motivações e consequências dos movimentos dentro do "jogo".

O problema do jogo é que ele, em si, pode querer jogar de volta conosco. Pode haver um "metajogo" nessa dinâmica toda, afinal, em sistemas complexos - abertos à interação com variáveis não consideradas a princípio - os resultados são sempre muito próximos do caos. O que ocorre é que a quantidade de dados e variáveis e serem considerados é exaustivamente grande, forçando um recorte que não invalida a teoria, mas retira muito de sua força.

O trapaceiro
O que o mito pode nos ensinar em relação aos jogos? Creio que a melhor forma de compreendermos os limites dos jogos é estudarmos a figura mítica que vive nesses limites, o "Trickster", o "pregador de peças" ou "trapaceiro".

Thor luta contra Loki
Ordem e Caos em jogo
Geralmente representado como uma divindade, o Trickster quebra as regras dos deuses, da natureza ou da sociedade. Pode ocorrer de ele inaugurar novas regras, mas em geral ele está mais atento a quebrar padrões que a construir novos parâmetros. Pode acontecer de ele ser essencialmente perverso e mal-intencionado, como Loki, o meio-irmão do deus nórdico Thor, mas o que mais fascina nessas figuras é que, em geral, ainda que de uma forma involuntária, ele tem efeitos positivos ou cria as condições de sua própria derrota. O Trickster pode ser astuto ou tolo ou ambos, é uma figura nebulosa por definição. Frequentemente são engraçados e cômicos, mesmo quando considerados sagrados e perigosos.

"Para Jung, tal simbolismo se refere à hamonização psiquica de Animus e Anima (imagens internas da Psique para Masculino e Feminino), dinâmica importante no processo de individuação. Loki, o trickster nórdico, também troca de sexo. Curiosamente, ele compartilha a capacidade de alterar os sexos com Odin, o deus nórdico que preside ao panteão, que também possui muitas características Tricksters (Malandro). No caso da gravidez de Loki, ele foi obrigado pelos deuses a parar um gigante, ele resolveu o problema ao se transformar em uma égua e atrair o cavalo mágico do gigante para longe. Voltou algum tempo depois com uma criança que tinha dado à luz, o cavalo de oito patas Sleipnir, que serviu como montaria a Odin." - Trickster, Wikipedia, artigo.

Brinca comigo?
Se não pode (con)vencê-los, confunda-os!
O arqui-inimigo do Batman, Coringa, é um Trickster. Ele subverte as regras sociais e gosta de colocar à prova os valores dos indivíduos e as certezas principalmente do personagem principal. De qualquer forma o confronto com essa figura mítica do limiar da ordem sempre vai trazer um reforço para o status quo. Seja reestruturando em novos moldes a ordem que existe, seja abrindo espaço para a estruturação de uma nova. É na adversidade que se testam os limites das nossas certezas.

Tudo isso é parte natural do movimento da libido na nossa dinâmica psíquica. Enquanto há vida há regra e quebra, certeza e dúvida. Enquanto há dúvida há inquietação, movimento, vida.

E você? Já abocanhou seu bocado de caos hoje?

Texto por: Renato Kress
Diretor do Instituto ATENA

2 comentários:

  1. "Ele subverte as regras sociais e gosta de colocar à prova os valores dos indivíduos e as certezas principalmente do personagem principal."
    Penso que tal teoria se aplica perfeitamente nas relações reais, onde as pessoas em seus relacionamentos fazem exatamente isso. Tal comportamento favorece o encontro com a luz e a sombra de cada indivíduo, possibilitando um verdadeiro encontro consigo mesmo. O desafio é grandioso, pois temos que ultrapassar as barreiras do incômodo gerado em tais relações e transmutar o que de "pior" existe em nosso íntimo. Grande abraço! Gostei muito!

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    1. Obrigado, Ana! ;)
      Confrontando "o outro" é que conseguimos trazer à luz o pior e o melhor de nós mesmos. Nos conhecermos, nos desenvolvermos, aprender e evoluir em nossa individuação. As relações têm esse quê de dinâmica psíquica que nos equilibra nos derrubando.

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